Mapeamento de amas de leite no Rio de Janeiro na Primeira República recebe menção honrosa em prêmio do AGCRJ

Janeiro/2019

Marina Lemle / Blog de HCS-Manguinhos

Caroline Amorim Gil

As amas de leite – mulheres cujo trabalho era amamentar filhos de outras – eram uma constante vida cotidiana do Rio de Janeiro há um século, e não apenas nas classes mais abastadas. É o que mostra a pesquisa de mestrado “Precisa-se ou aluga-se: o mapeamento de amas de leite na cidade do Rio de Janeiro na Primeira República”, de Caroline Amorim Gil, orientada pela professora Gisele Sanglard, do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS/Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz). A dissertação recebeu menção honrosa no Prêmio de Monografia Afonso Carlos Marques dos Santos de 2018, do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ).

Atualmente aluna de doutorado do PPGHCS, Caroline conta nesta entrevista ao Blog de HCS-Manguinhos o que descobriu na pesquisa, fala da importância de médicos como Moncorvo Filho e Fernandes Figueira e comenta brevemente a questão da amamentação e da alimentação infantil hoje.

Quais as principais observações da sua pesquisa?

O estudo teve como objetivo analisar a influência das amas de leite na dinâmica da cidade do Rio de Janeiro e sua presença nas teses de alunos da FMRJ no momento em que a mortalidade infantil se tornava uma questão de saúde pública. Analisamos uma base composta por 1.600 anúncios de amas de leite presentes no Jornal do Brasil, entre 1900 e 1906, o que permitiu perceber que a nutriz era uma constante na vida cotidiana. As aparições tiveram queda a partir de 1930.

Os séculos XVIII e XIX tiveram em comum a ama de leite como parte dos hábitos daqueles que dispunham de recursos para manter uma nutriz. A princípio, a ama foi identificada como uma forma de suprir os desejos ou necessidades de mães que se opunham ao aleitamento ou estavam impedidas de realizá-lo. Observa-se no início da República que o recurso à ama de leite se expandiu entre as mães pobres, sendo exercido por mulheres brancas, pardas e negras, brasileiras ou estrangeiras, que encontravam no puerpério uma forma de renda.

Observou-se uma cidade que sofreu a especulação imobiliária pelo seu processo de remodelação nas primeiras décadas do século XX, os impactos das expansões das redes de transporte desde fins do século XIX e a presença de uma linha férrea responsável por cortar as freguesias mais distantes e encurtar a distância com a área central. Foi justamente nas imediações da linha de trem que se encontrou a ama de leite. Seu deslocamento pelas freguesias tem relação direta com o próprio crescimento da cidade e a pluralidade socioeconômica.

Em 1903 a ama não era mais um recurso apenas da mulher de elite. O Jornal do Brasil indica que passou a ser requisitada na Fábrica das Chitas, em Vila Isabel, para atender possivelmente os filhos das operárias. A procura veio de “habitações modestas”, com pagamentos ainda mais modestos na Cidade Nova, no Engenho Novo e na Mangueira, dentre muitas outras localidades.
As fontes possibilitaram perceber uma brusca alteração no quadro das amas de leite na virada do século XIX para o XX. Os anúncios de oferta e procura no Jornal do Brasil levaram, ao menos, a dois indicativos: que a substituição do leite materno pelo leite de vaca ou farinhas lácteas não foi tão rápida como pontuou a historiografia; e que, se durante séculos a ama foi um recurso restrito às classes mais abastadas, ao que tudo indica os temores médicos se concretizaram e a atividade se disseminou entre as classes populares.

Havia contradições entre o que os médicos recomendavam? Quais as controvérsias na época? Alguma corrente acabou predominando?

Ao longo da pesquisa encontramos em grande parte das teses de alunos da FMRJ a defesa pelo leite materno como alimento de superioridade incontestável, no entanto havia certa discórdia sobre o recurso da ama de leite. Uma parcela era categoricamente contra, alertando para a riqueza do leite materno e a falácia do leite fraco. Outros médicos enxergavam na ama  um problema sobre o qual não era possível lutar, sendo mais seguro a sua fiscalização, a fim de evitar riscos à criança e à mulher que aleitava.

Neste ambiente de propostas estavam os médicos Moncorvo Filho e Fernandes Figueira. Moncorvo Filho, envolvido com o processo de fiscalização de amas de leite, fundador do Instituto de Proteção e Assistência à infância – Ipai, criou em sua instituição um serviço de atestação de amas. Fernandes Figueira, diretor da Policlínica de Crianças do Rio de Janeiro, escreveu o Livro das Mães, na tentativa de alertar as mulheres sobre o desenvolvimento infantil. O leite materno aparecia com frequência como alimento incontestável, sendo a ama um caso extremo. Fernandes Figueira partia da premissa de convencimento das mães para que não deixassem de amamentar. Voltava-se também para as mães trabalhadoras, indicando que realizassem a amamentação mista, mas que não deixassem a amamentação natural por completo.

Apesar das divergências quanto ao caminho de ação, esses dois médicos, à frente de instituições destinadas à infância, tinham como objetivo o combate à mortalidade. Em 1923, o Departamento Nacional de Saúde Pública publicava o regulamento da Inspetoria de Higiene Infantil, que tinha como chefe o médico Fernandes Figueira. O projeto informava não reconhecer a indústria de amas, mas postulava as regras para sua fiscalização. O projeto foi o mais próximo de um consenso entre a ideologia de Fernandes Figueira e o pensamento de Moncorvo Filho. As ações desses médicos em defesa da construção nacional são frutos da virada do século XIX para o XX. E a popularização das amas de leite indica a influência das práticas culturais.

É possível traçar algum paralelo com os dias de hoje, cem anos depois? O que mudou nos hábitos populares e nas recomendações médicas ao longo desse século?

É difícil traçar um paralelo. Tendo em vista que estamos falando de sociedades diferentes, em contextos distintos, os resultados não poderiam ser os mesmos. O que vejo na imprensa atual é a tentativa de estímulo ao leite materno pelos seus benefícios, como pode ser observado em diversas campanhas do SUS. Mas não posso falar nos dias de hoje sobre as amas de leite ou o impacto das farinhas lácteas. Fato é que as fórmulas estão presentes, o leite artificial está posto, é uma realidade da nossa sociedade e de uso difundido.

A política de controle e fiscalização do leite hoje é um fator disseminado, mas começou lá atrás quando os índices elevados de mortalidade infantil e problemas digestivos fizeram com que médicos da FMRJ averiguassem o leite comercializado na cidade do Rio de Janeiro.  Esses médicos advertiram em suas teses de conclusão de curso e artigos científicos sobre a necessidade de uma maior fiscalização do leite que era vendido na cidade, chamando a atenção dos poderes públicos para a criação de medidas de controle e fiscalização do leite. A publicidade governamental no que tange a saúde infantil indica que a luta por uma alimentação de qualidade, que mais se aproxime do leite humano, nos primeiros meses de vida da criança, segue presente na atualidade. Porém devemos levar em consideração o surgimento de questões norteadoras distintas daquelas de início do século XX, e pelas quais teríamos que analisar a politica, a economia, a cultura, e os impactos das novas tecnologias que permeiam as demandas atuais.

Leia em HCS-Manguinhos:
Perigosas amas de leite: aleitamento materno, ciência e escravidão em A Mãi de Familia, artigo de Karoline Carula (vol.19, supl.1, dez. 2012)
‘Amas mercenárias’: o discurso dos doutores em medicina e os retratos de amas – Brasil, segunda metade do século XIX, artigo de Sandra Sofia Machado Koutsoukos (vol.16, no.2, jun 2009)
Leia também:
Parto, nascimento e mortalidade infantil em HCS-Manguinhos
Dossiês na última edição de 2018 oferecem perspectivas novas e complementares a todos que estejam interessados no passado e no presente da saúde pública

Como citar este post:
Mapeamento de amas de leite no Rio de Janeiro na Primeira República recebe menção honrosa em prêmio do AGCRJ, entrevista de Caroline Amorim Gil ao Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Publicado em 10 de janeiro de 2019. Acesso em 12 de julho de 2018. Disponível em http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/mapeamento-de-amas-de-leite-no-rio-de-janeiro-na-primeira-republica-recebe-mencao-honrosa-em-premio/