Outubro/2018
Roberta Cardoso Cerqueira | Blog de HCS-Manguinhos
A palavra “fascismo” nunca foi tão falada no Brasil. Nos últimos meses, ela tem sido associada às declarações públicas do candidato à presidência Jair Bolsonaro. Para entendermos, afinal, o que é fascismo e se o termo se aplica ou não à atual conjuntura política e social brasileira, convidamos o jornalista e historiador Bruno Leal, professor da UnB e editor do blog Café História, que nos concedeu entrevista esclarecedora, traçando comparativos históricos com a Itália de Mussolini e a Alemanha de Hitler, e chegando até as fake news de hoje em dia.
O que foi o movimento fascista e por que estamos falando tanto em fascismo?
O fascismo surgiu logo depois da Primeira Guerra Mundial, na Itália, como um movimento político-ideológico da extrema-direita capitaneado por Benito Mussolini. Esse movimento conseguiu formar um partido, o Partido Nacional Fascista (PNF), que arregimentou milhares de pessoas e que, em pouco tempo, preparou as bases para a construção do Estado Fascista. A Itália fascista foi uma ditadura que vigorou entre 1922 e 1943. Ela reprimiu opositores, colocou o país na Segunda Guerra Mundial e contribuiu para o projeto exterminacionista dos nazistas. O fascismo, que também acabou se manifestando em outros países, possui uma ideologia profundamente antidemocrática, excludente e violenta. Há um conjunto de características que é bastante típico do fascismo: ultranacionalismo, xenofobia, populismo, antiminoria, anti-intelectualismo, militarismo, autoritarismo, antiliberalismo, corporativismo, moralismo, anticomunismo e racismo, para citar as mais marcantes. O discurso fascista era e é obcecado com a luta anticorrupção, com o culto ao líder carismático e com o discurso de renovação na política – proclamava-se “antissistêmico”. Além disso, o fascismo sempre recorreu a palavras como “terceira via”, “alternativa”, “limpeza” e “faxina”.
Temos realmente falado bastante sobre fascismo ultimamente. O Google, por exemplo, registra um aumento repentino de buscas para a palavra “fascismo” a partir do final de setembro deste ano. De acordo com a ferramenta Google Trends, os estados que mais buscaram pelo termo foram: Rio de Janeiro, Amapá, Pará e Paraíba, além do Distrito Federal. Isso está relacionado com o período eleitoral e, mais especificamente, com os discursos do candidato da extrema-direita, Jair Bolsonaro (PSL), atualmente deputado federal pelo Rio de Janeiro. Bolsonaro tem um histórico de falas preconceituosas contra negros, mulheres, índios, homossexuais, refugiados políticos e opositores. Ele vive dando declarações antidemocráticas. Já defendeu prender adversários e já rendeu homenagem pública ao coronel reconhecido pela Justiça brasileira em 2008 como torturador do regime militar, Carlos Alberto Brilhante Ustra. Recentemente, o ex-líder do movimento supremacista branco norte-americano, Ku Klux Kan (KKK), David Duke, fez elogios a Bolsonaro. “Ele soa como nós”, disse Duke à imprensa. Ora, tudo isso tem levado analistas políticos, pesquisadores, movimentos sociais e pessoas comuns a classificar Bolsonaro como fascista. Não estamos diante do fascismo italiano original em sua integralidade. Bolsonaro, por exemplo, influenciado pelo economista Paulo Guedes, tem defendido o liberalismo – mas uma grande variedade de características clássicas do fascismo está presente nos discursos dele, de modo que me parece plausível classificar Bolsonaro dessa forma. Este não me soa como mais um caso em que o termo “fascismo” é usado levianamente visando desqualificar adversários políticos. Agora, se ele vai fazer um governo fascista caso seja eleito, aí já é outro papo.
Podemos identificar movimentos fascistas no Brasil? Quais?
Existe um clima de fascinação e euforia no país com as soluções tipicamente fascistas – mesmo que as pessoas desconheçam o significado do termo fascismo. Não tenho dúvidas quanto a isso. Mas se você considerar “movimentos” fascistas aqueles grupos coesos e organizados, com estrutura, hierarquia e plano de ação, a coisa é mais difícil de mapear. Nas últimas semanas, a mídia noticiou pichações nazistas em diversas cidades brasileiras, além de espancamentos e perseguições políticas. Mas ainda sabemos pouco sobre esses atos e quem está por trás deles. Não sabemos se foram ações isoladas, se foram iniciativas individuais ou de uma organização, se há ou como se dá o envolvimento ou liderança de determinados partidos políticos.
É evidente, no entanto, que o discurso de características fascistas, que anima essas ações, tem ganhado muita força. Desde 2013, nas mídias sociais e em diversas manifestações de rua organizadas pelas direitas, tem sido possível acompanhar indivíduos e grupos com posições que poderíamos chamar de fascistas. Vimos vários cartazes pedindo intervenção militar e o fechamento de instituições democráticas, elogiando a tortura e as mortes durante os anos de autoritarismo no país. Isso se tornou moralmente tolerável para muitos brasileiros e brasileiras nos últimos anos.
Tudo isso faz soar um alerta para o Brasil. E ainda mais agora, após o primeiro turno das eleições. Em uma sociedade na qual um candidato à presidência classifica um torturador como herói nacional e em que quase metade escolhe dos eleitores vota nele num primeiro turno que contava com outros 12 candidatos, pode ser que o fascismo não se sinta mais constrangido. A exposição de ideias cruéis e desumanas de autoritarismo e perseguição está deixando de ser vexatória e passando a ser propaganda.
Qual era o clima na Alemanha no período pré-fascista? Que papel a propaganda teve na disseminação das ideias fascistas?
A Alemanha antes da chegada dos nazistas ao poder é a Alemanha da República de Weimar, estabelecida em 1919 e que sobrevive até 1933. Era um país muito rico culturalmente, com seus cabarés, com sua efervescência artística e literária, multicultural, um país que adorava novidades musicais, como o jazz americano, mas que era também politicamente bastante fragilizado. A democracia-liberal foi fácil e rapidamente corroída naqueles anos. No plano econômico, Weimar foi uma catástrofe. Desemprego, uma inflação assombrosa, desvalorização cambial e inadimplência assolavam a população e colocavam o governo em uma situação cada vez mais delicada. Isso favoreceu o surgimento de soluções radicais, nacionalistas e moralistas da extrema-direita, como aquelas apresentadas pelo Partido Nazista.
A propaganda teve um papel fundamental na difusão das ideias fascistas – em especial as racistas, de perseguição a minorias e da existência de um “inimigo interno” responsável por todo o mal vivenciado pela população. Era bastante comum, por exemplo, encontrar discursos antissemitas em jornais de grande circulação. Esses discursos acusavam os judeus de serem inassimiláveis, traidores, quinta-coluna, entreguistas e agentes – e isso é interessante – ora do capitalismo, ora do comunismo. Muitas peças de propaganda, que iam desde matérias pretensamente jornalísticas até charges e panfletos, associavam os judeus ao aumento do índice de criminalidade na Alemanha. A retórica da força e do autoritarismo como forma de trazer ordem e o bem-estar aos “verdadeiros merecedores”, ou ainda, aos “filhos da nação”, caiu como uma luva nessa sociedade em convulsão.
Quando os nazistas conquistaram o poder, a propaganda se converteu em uma área bastante estratégica. O nazismo foi uma experiência histórica em uma época de massas. Portanto, era preciso lançar mão de uma comunicação também de massa para conquistar e alimentar corações e mentes. Por isso, o cinema, a televisão, os jornais e o rádio foram tão importantes quanto as medidas legislativas adotadas. Tudo isso combinava-se com o zeloso controle da produção do conhecimento realizado no país, e das ações nazistas que visavam sufocar ou cooptar a intelectualidade a fim de minimizar espaços de análise crítica ou de reflexão que suscitassem algum tipo revisão ou questionamento do nazismo.
É possível fazer um paralelo entre a propaganda fascista com as fake news?
O nosso conceito atual de fake news é muito novo, trata-se de um fenômeno muito associado às novas mídias digitais, não existindo, portanto, no contexto do fascismo histórico. Devemos, assim, tomar cuidado com o risco do anacronismo. Mas notícias falsas eram bastante comuns em países como a Itália e a Alemanha na década de 1930. Um dos maiores embustes de todos os tempos foi o chamado Protocolos dos Sábios de Sião, um documento apócrifo, isto é, falso, bastante difundido pela polícia czarista no início do século XX e que extrapolou sua localidade de origem, a Rússia. Ele dava conta de uma reunião secreta de judeus sionistas na qual teria sido traçado um ambicioso plano: dominar o mundo. Isso se daria principalmente a partir da infiltração de judeus nos mais diversos países. Ainda que a falsidade dos Protocolos tenha sido revelada nos anos seguintes, a mentira estava consolidada e ganhou muito terreno, especialmente na Europa. A própria desmentida do documento era tratada como uma prova cabal da força do “poder judaico”. O livro fez enorme sucesso em toda a Alemanha – no Brasil foi traduzido por Gustavo Barroso, uma das lideranças do movimento Integralista no mesmo período. Esse imaginário de conspiração está presente em diversos discursos de Hitler. Os nazistas estavam convictos de que os judeus tinham um plano para enfraquecer e derrotar a Alemanha, de dentro para fora e de fora para dentro.
Além dos Protocolos, há vários outros exemplos de disseminação de notícias falsas com finalidade política. Na Alemanha pré-fascista, um parlamentar foi fundamental para difundir teorias antissemitas e antimaçônicas, o deputado Hermann Ahlwardt (1846-1914). Ahlwardt alegou, por exemplo, que o governo alemão tinha sido comprado por judeus. Chegou a produzir documentos falsos e tudo com o intuito de provar sua história. Em outra ocasião, afirmou que judeus tinham vendido rifles danificados para as forças armadas alemãs. Enfim, notícias falsas não são exclusividade de fascistas, mas servem muito bem para aqueles que dependem da mobilização dos medos e dos preconceitos das massas a fim de se fortalecer e conquistar o poder.
Leia em HCS-Manguinhos:
Un enigma llamado Agostino Gemelli: catolicismo, fascismo y psicoanálisis en la Italia de entreguerras, artigo de Mauro Pasqualini (vol.23, no.4, out./dez. 2016)
Sob o discurso da “neutralidade”: as posições dos psicanalistas durante a ditadura militar, artigo de Carmen Lucia Montechi Valladares de Oliveira (vol.24, supl.1, 2017)
Imprensa, gênero e cultura científica na década de 1960: entrevista com Eulina Cavalcante, do jornal News Seller, artigo de Eulina Cavalcante de Almeida, Clara Guimarães e Graciela de Souza Oliver (vol.22, no.4, dez 2015)
Fome, comida e bebida na música popular brasileira: um breve ensaio, artigo de Francisco de Assis Guedes de Vasconcelos, Mariana Perrelli Vasconcelos e Iris Helena Guedes de Vasconcelos (vol.22, no.3, jul./set. 2015)
Interações públicas, censura privada: o caso do Facebook, artigo de Sergio Amadeu da Silveira (vol.22 supl. Rio de Janeiro dez. 2015)
O livro Programa de saúde : um caso de censura durante a ditadura militar brasileira, artigo de Sandra Reimao (nov 2013, vol.20, suppl.1)
Coleção entomológica do Instituto Oswaldo Cruz: resgate de acervo científico-histórico disperso pelo Massacre de Manguinhos, artigo de Jane Costa, Danielle Cerri, Magali Romero de Sá e Carlos José Einicker Lamas (v.15, n.2, abr./jun. 2008)
Discursos fascistas fazem soar alerta para o Brasil, diz historiador. Entrevista com Bruno Leal, por Roberta Cardoso Cerqueira. Blog de HCS-Manguinhos, publicado em 25 de outubro de 2018. Disponível em www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/discursos-fascistas-fazem-soar-alerta-para-o-brasil-diz-historiador