Culturas psi: psicanálise, subjetividade e política

CARTA DOS EDITORES CONVIDADOS

Capa do suplemento: arte de Fernando Vasconcelos com imagens de W. Mattieu Williams (A Vindication of Phrenology. London, 1894).

Mariano Ben Plotkin, do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas, Universidad Nacional de Tres de Febrero

Jane Russo, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Este número especial é fruto do trabalho que vem sendo realizado por um grupo de estudos internacional sobre a história da psicanálise e demais saberes psi. Exploramos aqui uma dupla temática: de um lado o entranhamento da psicanálise nas culturas locais, transformando-as e sendo transformada por elas, e, de outro, as relações sempre complexas, nunca lineares, entre a psicanálise e outras formas de conhecimentos e práticas que conformam o que caracterizamos como culturas psi.

Entendemos como culturas psi não apenas o desenvolvimento das disciplinas científicas voltadas para o estudo e a gestão da subjetividade e da mente, mas também todos os discursos e práticas associados a tais disciplinas, bem como as formas de recepção, circulação e disseminação delas. O uso do termo no plural visa enfatizar a multiplicidade de modos e níveis em que os saberes psi permeiam as culturas locais e a variedade das formas que adquiriram suas diversas recepções e implantações.

Entre os saberes sobre a subjetividade, a psicanálise tornou-se uma espécie de marca do século XX na Europa e nas Américas (do Norte e do Sul), funcionando como uma Weltanschauung, em especial nos meios intelectuais e letrados, mas sendo também fortemente disseminada junto a um público mais amplo. Na passagem para o século XXI assistimos à crise tanto da Weltanschauung psicanalítica quanto da psicanálise como disciplina. Terapias alternativas com uma ênfase maior ou menor no corpo e, sobretudo, o recente avanço da psiquiatria biológica e das neurociências parecem estar colocando em xeque o sujeito freudiano e os dispositivos terapêuticos a ele associados.

Não se trata, porém, apenas de psicanálise e neurociências. As culturas psi constituem um universo mais amplo e complexo. Especialmente em regiões como a América Latina (mas não apenas aí), onde o processo de modernização seguiu caminhos particulares, em que a cultura letrada ocidental coexiste com tradições locais ou também importadas (como é o caso dos elementos africanos), que também sofreram um processo de reinterpretação, dando lugar a todo tipo de hibridizações, a construção das culturas psi teve características específicas.
Afastando-se das histórias mais canônicas acerca da disseminação da psicanálise e das culturas psi de um modo geral, este suplemento enfatiza exemplos latino-americanos e de outras “modernidades periféricas”, como o caso da Espanha na transição para a democracia, da Itália dos anos 1960 e de alguns países do leste europeu. Buscamos, assim, abordar a psicanálise, sua história e suas articulações com outros saberes a partir de um universo socio-cultural diverso do que o habitualmente considerado.

O suplemento está dividido em quatro blocos temáticos. No primeiro, envolvendo assuntos em torno de “culturas psi, desenvolvimentos e tensões”, são discutidas distintas dimensões da conformação de uma cultura psi, seus desenvolvimentos e tensões, abrindo caminho para os debates mais localizados das seções seguintes. O artigo de Mariano Ben Plotkin questiona a especificidade irredutível da psicanálise como saber e como prática. Enfatizando hibridizações e porosidades, interroga-se sobre os múltiplos lugares que tal saber ocupa dentro do universo ampliado das culturas psi, particularmente em regiões como a América Latina. Luiz Fernando Dias Duarte, por seu lado, focaliza as complexas relações entre as ciências sociais – especialmente a antropologia – e a psicanálise, duas disciplinas que, em outros trabalhos, caracterizou como inseridas na tradição romântica ocidental. Finalmente, o trabalho de Carlos Aberto Uribe busca definir um sujeito moderno latino-americano (ou ao menos colombiano) que, diferente do proposto pela sociologia clássica, nunca se “desencantou”, permanecendo imerso em um sistema de rituais localizados no interior de uma cultura terapêutica de características híbridas.

O segundo bloco, envolvendo a temática “psicanálise e contexto político”, são analisados três casos em que a psicanálise convive com circunstâncias políticas concretas de países europeus que poderíamos caracterizar como representativos de “modernidades periféricas”. Anne-Cécile Druet analisa o processo pelo qual, na Espanha pós-franquista, os psicanalistas argentinos exilados, na sua maioria de orientação lacaniana, foram responsáveis pela produção de uma comunidade psicanalítica e também pela difusão mais geral da psicanálise. Tais acontecimentos nos permitem questionar o lugar do “centro” e da “periferia” nos processos de circulação transnacional de ideias. Carmen Lucia Montechi Valladares de Oliveira focaliza o desenvolvimento e o comportamento das sociedades psicanalíticas brasileiras no período da ditadura militar, vinculando a suposta “neutralidade” política mantida pelas sociedades psicanalíticas à difusão da corrente kleiniana na psicanálise brasileira. O trabalho de Judit Mészáros discute os avatares do renascimento psicanalítico em três países que pertenceram ao bloco soviético, mostrando suas similitudes e diferenças e vinculando-as com a história dos respectivos movimentos psicanalíticos no período entreguerras.

Os dois artigos que constituem o terceiro bloco temático – “psicanálise e culturas psicanalíticas” – focalizam o lugar ocupado pelo pensamento psicanalítico nos processos de modernização cultural no Chile e na Itália. Nos dois casos a disseminação do pensamento freudiano ocorreu nas margens dos grandes centros difusores e das associações psicanalíticas, constituindo uma espécie de “história alternativa” de seus transbordamentos. O texto de Mauro Pasqualini centra sua atenção em um caminho particular de difusão da psicanálise durante a década de 1960 na Itália: os estudos de marketing. Pasqualini discute a utilização de elementos da psicanálise propostos por Melanie Klein para analisar (e orientar) as pautas de consumo na Itália do pós-guerra. Mariano Ruperthuz Honorato, por sua vez, mostra a difusão da psicanálise entre um público ampliado, no Chile da primeira metade do século XX, centrando sua atenção em cursos de autoajuda e na literatura popular.

O último bloco temático – “psicanálise e neurociências” – trata de tensões e diálogos entre essas duas formas de pensar as relações “corpo-alma”. Os artigos de Maria Jimena Mantilla e Jane Russo levantam questões que ultrapassam a concepção simplificadora de uma espécie de luta entre o fisicalismo reducionista e o psicologismo humanizante. Mantilla toma como centro de sua análise a noção de “plasticidade cerebral” para mostrar possíveis pontos de encontro entre a psicanálise e as neurociências dentro de um contexto cultural mais amplo definido pela cerebralização das subjetividades. A autora propõe a noção de ressonância semântica para definir “ideias que, apesar de diferentes, ressoam em um espaço de significação comum”. Finalmente, Jane Russo busca refletir sobre a ascensão do “sujeito cerebral” ou “self somático” em substituição ao “sujeito psicológico” do século passado. Argumenta que esse fenômeno pode ser visto como uma reconfiguração da tensão entre as tradições iluminista e romântica que conformou a ideia moderna de subjetividade.

Acesse o sumário (vol.24, supl.1, 2017)

Destaques no Blog de HCS-Manguinhos:

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Rafael Dias de Castro, professor do Departamento de Ciências Humanas da Universidade do Estado de Minas Gerais, traz subsídios para os debates sobre histeria, nervosismo e sexualidade de 1908 a 1919

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Freud para todos: Chile, 1920-1950
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Cristiana Facchinetti resenha livro de Mariano Ruperthuz Honorato sobre os primórdios da psicanálise no Chile