O Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz oferece, em setembro, o curso Freud na América Latina: histórias de controle, civilização e sublimação. Experiências no Brasil e no Chile (1910-1950). O curso será ministrado por Mariano Ruperthuz Honorato (Facultad de Psicología/Universidad Diego Portales, Chile) e Cristiana Facchinetti (PPGHCS/COC/Fiocruz) nas manhãs de 18 a 22 de setembro de 2017.
A história da presença da psicanálise em algumas grandes cidades da América Latina só começou a ser investigada recentemente. De acordo com Cristiana Facchinetti, esta história não começou com o estabelecimento de instituições psicanalíticas filiadas à Associação Psicanalítica Internacional, processo que decorreu nos vários países da América Latina entre os anos de 1940 e 1950, e nem a sua difusão deveu-se à criação de instituições formadas por seguidores Jacques Lacan, a partir da década de 1970. Segundo a pesquisadora, a circulação e apropriação da psicanálise na América Latina refere-se a um contexto anterior, a partir de 1910.
“É possível indicar que a teoria freudiana começou a ser discutida no continente mais ou menos simultaneamente a muitas das principais cidades europeias e em alguns casos específicos, até mesmo antes. De fato, o próprio Freud estabeleceu bem cedo trocas de correspondência e de livros e publicações com os médicos e intelectuais latino- americanos, especialmente argentinos, brasileiros, chilenos e peruanos. É verdade que a região não estava entre as áreas prioritárias para ele. No entanto, a ideia de ‘colonizar’ novos territórios em mais ou menos exóticas terras para sua disciplina sempre se mostrou extremamente atraente, e em mais de uma ocasião Freud foi muito ativo neste sentido”, conta.
De acordo com Facchinetti, no entreguerras a psicanálise já havia alcançado grande espaço em diferentes países da América Latina, entrelaçando-se com iniciativas profiláticas do governo em campanhas nacionais em prol da saúde dos cidadãos e articulando-se a projetos educacionais nacionais que se propunham a produzir uma educação científica e moderna. Segundo ela, a psicanálise também teve lugar nos hospitais e clínicas psiquiátricas de todo o continente, como uma ferramenta moderna da psiquiatria local.
“É por estas razões que surpreende a quase total ausência de referências à América Latina na grande maioria das historiografias da psicanálise, principalmente aquelas produzidas na Europa e nos EUA. Tampouco há, até hoje, uma história já estabelecida sobre a América Latina que dê conta da apropriação desigual do pensamento freudiano na região. Histórias nacionais sobre a circulação da psicanálise na América Latina também são um produto relativamente novo. Fechando o quadro, e isso também é significante, nenhuma das biografias de Freud se refere aos laços que ele estabeleceu com personagens da América Latina, à exceção de algumas referências presentes na clássica biografia de Freud feita por Ernest Jones”, revela.
A professora acrescenta que a falta dessa memória e história – “ou o recalque, somos tentados a dizer, usando um conceito caro aos psicanalistas” – é geral, e se torna ainda mais intrigante no caso da recente biografia de Freud escrita por Elisabeth Roudinesco, que tem visitado regularmente vários países da América Latina e conhece os desenvolvimentos locais da psicanálise. “Apesar disso, a pesquisadora apenas menciona de passagem as ligações Freud com a região. Consequentemente, podemos dizer que tanto a história da psicanálise na América Latina como o lugar que o subcontinente teve para o criador da psicanálise foram tornados invisíveis pela historiografia produzida nos EUA e na Europa”, critica.
Para ela, este “esquecimento” é ainda menos justificável considerando a importância que as ideias de Freud e a psicanálise tiveram na América Latina, a sua projeção na região e que essa circulação é um elo importante na cadeia transnacional do pensamento e da prática psicanalítica. “A história dos sistemas de ideias e crenças não pode ser separada da história das suas várias instalações e práticas”, afirma.
“Para produzir culturalmente ‘O Retorno do Recalcado’ é que o curso pretende estabelecer uma leitura crítica das tradições historiográficas e metodológicas utilizadas para a construção de histórias da psicanálise, frequentemente estabelecidas dentro da história dos chamados ‘saberes psi’ (psicologia, psiquiatria e psicanálise) em sua ortodoxia institucional e definida por muitos como a história ‘oficial’ da psicanálise na América Latina”, completa.
O curso propõe uma outra concepção, que coloca a expansão e circulação do pensamento freudiano em diferentes países da América Latina como parte de sua história cultural, e destina-se a discutir uma nova definição da psicanálise como objeto de pesquisa histórica e as respectivas implicações metodológicas contidas nesta redefinição. Os professores discutirão as potencialidades e limitações das abordagens historiográficas mais tradicionais e internalistas, geralmente provenientes de movimentos psicanalíticos e psicológicos, e se concentrarão na redefinição da psicanálise como um amplo objeto cultural, procurando reconstruir o impacto das teorias de Freud que foram para além dos circuitos intelectuais, apontando para o nascimento de novos discursos e práticas sociais autorizados com base no freudismo.
Segundo Facchinetti, com apoio da psicanálise, implementou-se a adoção, na sociedade, de uma nova visão antropológica sobre o ser humano, – concebido em termos de um sujeito marcado pela pulsão, pela sexualidade e pelo Inconsciente, o que levou à re-semantização de imagens sociais sobre a doença mental, crime, família e infância, criando novos padrões emocionais que certamente impactaram a vida de muitos latino-americanos. “Este curso vai colocar uma forte ênfase em como essa reconceituação analítica permite gerar novas possibilidades metodológicas para a investigação e análise histórica”, afirma.
O curso será realizado de 18 a 22 de setembro de 2017, das 9h30 a 13h, no PPGHCS/COC/Fiocruz (Av. Brasil, 4036 – 4º andar – Sala 420, Rio de Janeiro). Os interessados devem entrar em contato com a secretaria da Pós Graduação: Tel.: (+ 55 21) 3882-9093/9095/9096/9170. Tel/Fax: (+ 55 21) 2590-5192. Email: historiasaude@coc.fiocruz.br
Como citar este post:
Freud na América Latina de 1910 a 1950: curso na Casa de Oswaldo Cruz em setembro, Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos, 2017. Publicado em 26 de agosto de 2017. Acesso em 26 de agosto de 2017. Disponível em http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/freud-na-america-latina-de-1910-a-1950-curso-na-casa-de-oswaldo-cruz-em-setembro/
Leia em HCS-Manguinhos:
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