Revistas científicas na América Latina: o caso do SciELO

Agosto/2017

Roberta Cardoso Cerqueira *

Roberta Cardoso Cerqueira em sua apresentação no 25º Congresso Internacional de História da Ciência e da Tecnologia, no Rio de Janeiro. Foto: Ruth Barbosa Martins.

Com a popularização da internet, nos últimos 20 anos, observamos mudanças importantes na publicação dos periódicos científicos. Apesar do processo de análise e avaliação por pares se manter predominante, a forma como os artigos passaram a ser submetidos à editoria das revistas se modificou, já que muitos periódicos adotaram sistemas de submissão online.

O uso mais intenso dos meios digitais, além de permitir que artigos fossem submetidos em formato eletrônico, propiciou o desenvolvimento de revistas editadas somente no meio digital. Na internet, o processo de publicação tornou-se mais ágil, mas nem por isso mais fácil. Indexações, índices de impacto, citações e transparência no processo editorial são alguns dos componentes que se tornaram exigências para a publicação de revistas acadêmicas de qualidade.

A expansão da internet no Brasil fez surgir um projeto importante para o desenvolvimento do periodismo científico no país. Em 1998, é lançado o projeto SciELO (Scientific Eletronic Library Online), uma iniciativa conjunta entre a Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo/FAPESP (instituição pública de fomento à pesquisa e ensino do estado de São Paulo) e o Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (BIREME), e em 2002, também o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), agência nacional de fomento criada em 1951 como objetivo de apoiar e financiar a pesquisa brasileira, passa a apoiar o projeto.

A iniciativa tinha por objetivo criar uma plataforma que promovesse os melhores periódicos nacionais por meio digital, baixando os custos de publicação. Todos os periódicos da coleção seriam publicados online e os artigos disponíveis em acesso aberto. Com essa medida, buscava-se dar visibilidade às revistas científicas brasileiras. A proposta era que o SciELO também cumprisse a função de indexar e fornecer estatísticas sobre as revistas, permitindo o acompanhamento do desempenho dos periódicos nos moldes de sistemas de impacto da produção científica, como o Fator de Impacto disseminado pelo JCR.

O SciELO proporcionou aos editores científicos brasileiros, bem como às equipes das revistas, melhoria dos processos de trabalho na edição dos periódicos, maior conscientização e aprimoramento das práticas de publicação acadêmica. Aos poucos, o programa tornou-se propagador e referência das boas práticas editoriais, além de estimular os editores a acompanharem as tendências das publicações científicas discutidas internacionalmente.

O projeto foi elaborado com a missão de tentar superar as dificuldades e a falta de comunicação e visibilidade entre cientistas dos países desenvolvidos e os de países em desenvolvimento. O seu modelo de operação, totalmente em acesso aberto, tornou-se parâmetro de disseminação da produção científica não só no Brasil, como em outros países da América Latina. A região é líder em publicação de artigos científicos em open access, particularmente na publicação identificada como via dourada (que disponibiliza o texto integralmente e de forma imediata). Com o desenvolvimento da plataforma, houve a incorporação de mais regiões e hoje a coleção SciELO conta, além dos países da América Latina e Caribe, com Portugal, Espanha e África do Sul, totalizando 15 países.

Editores científicos de vários países participaram do ICHST. Foto: Ruth Barbosa Martins

Operar neste modelo, no qual artigos são disponibilizados integralmente online, significa se engajar no movimento internacional que defende o open access. Há um entendimento de que a ciência é um bem público que precisa ser compartilhado de forma irrestrita e seu uso amplamente utilizado para difundir a ciência.

Plataformas como o SciELO, a Redalyc (Rede de Revistas Científicas da América Latina e Caribe, Espanha e Portugal) e a Latindex (Sistema Regional de Informação online para revistas científicas da América Latina, Caribe, Espanha e Portugal), contribuem para a visibilidade e acesso à ciência latino-americana, cuja representatividade junto aos indexadores internacionais ainda é baixa. Como reúnem uma grande quantidade de revistas, atraem também bastante leitores e contribuem para a avaliação da ciência produzida nestes países, já que possuem seus próprios índices de impacto.

Nos países latino-americanos, o financiamento da produção científica apresenta características bem distintas se comparado ao financiamento da ciência em outras regiões no mundo. Por aqui, nossas revistas dependem do apoio governamental e não há uma prática de doações privadas aos periódicos. Com as dificuldades econômicas causadas por cortes orçamentários, editores latino-americanos enfrentam dificuldades em manter periódicos científicos de qualidade. A pressão sofrida pelos cientistas por publicar em revistas com índice de impacto alto favorece os periódicos de acesso fechado, mesmo com as críticas que são feitas ao uso do fator de impacto para avaliação da pesquisa científica e a promoção na carreira acadêmica.

As críticas ao uso do fator de impacto como critério de avaliação de qualidade da pesquisa para distribuição de recursos para produção científica e promoção na carreira acadêmica levaram à elaboração da San Francisco Declaration on Research Assessment (Dora) em 2012. Esta declaração foi produzida por um grupo de cientistas americanos presentes na reunião anual da American Society for Cell Biology. O documento trata das fragilidades do uso do fator de impacto e também não recomenda seu uso pelas agências de fomento, pesquisadores, indexadores e instituições acadêmicas na avaliação da produção acadêmica. Trata-se de reconhecer a complexidade de fatores que podem ter influência e devem ser considerados na produção, avaliação e divulgação da pesquisa científica.

A pesquisadora Hebe Vessuri, em entrevista concedida ao blog de HCSM, afirma que “a forma como o papel das publicações científicas é percebido hoje é diferente, como um resultado do regime dominante de avaliação. Introduz-se a competição como ‘o’ instrumento de gestão no sistema global de pesquisa, e o desenvolvimento passa também a definir as regras da competição. Isto leva à adoção rígida de uma agenda ‘internacional’ e ao adiamento indefinido da atenção científica aos problemas locais”.

Mesmo com as dificuldades orçamentárias e o pouco incentivo à pesquisa científica, o Brasil tem tido papel de protagonismo nas ações de disseminação do uso do acesso aberto. História, Ciências, Saúde – Manguinhos é um dos muitos exemplos de periódico que segue sem cobrar qualquer taxa para submissão de artigos. Criada em 1994 pela Casa de Oswaldo Cruz, unidade da Fundação Oswaldo Cruz dedicada as atividades de pesquisa e divulgação científica na história das ciências e da saúde, a revista tem periodicidade trimestral, com um suplemento e dossiês temáticos a cada ano, tendo circulado sem interrupção desde sua criação. Possui versão digital e impressa. Em 2000, passa a fazer parte do SciELO, onde encontram-se os 24 volumes que compõem sua coleção.

Em 2006, seus editores decidiram começar a traduzir alguns de seus textos do português e do espanhol para o inglês, com o objetivo de ampliar o alcance dos artigos que publica. Mais recentemente a revista apresentou mudanças significativas: novos editores, investimento na ampliação do número de traduções, organização de workshop para discutir o cenário do periodismo científico e a elaboração de um plano de divulgação da revista nas mídias sociais. Mas por que investir na divulgação do periódico usando as mídias sociais? O objetivo é fazer com que os artigos tenham maior circulação e possam alcançar um público maior e também mais diverso. A iniciativa é parte estratégica da política editorial do periódico para intensificar seu processo de internacionalização.

A revista HCSM tem hoje 488.500 visualizações de páginas do seu blog (nacional e internacional); 7.597 curtidas na página do Facebook nacional e 3.184 no internacional. No twitter são 1.206 seguidores. O Twitter não é uma ferramenta muito utilizada por usuários brasileiros; o Facebook é o canal mais usado para compartilhamento das matérias e entrevistas que publicamos.

Acompanhar os avanços na área das publicações acadêmicas tem sido o desafio de revistas como HCSM e em grande parte das revistas produzidas em economias periféricas. Qualidade dos periódicos, aprimoramento dos processos editoriais e de divulgação dos artigos e a sustentabilidade das revistas frente a uma lucrativa indústria internacional de publicação são alguns dos pontos que precisamos discutir. A continuidade na adoção do modelo de open access também é muito importante. Para cientistas latino-americanos publicar em acesso aberto é dar visibilidade aos seus trabalhos, é poder dialogar com a ciência produzida em todas as regiões, reforçando o compromisso de contribuir para a elaboração de políticas públicas e o aprimoramento da produção científica internacional.

Sigamos reforçando o lema do portal Redalyc: ‘La ciência que no se ve no existe’.

Referências bibliográficas:

BENCHIMOL, Jaime L.; CERQUEIRA, Roberta C.; PAPI, Camilo. Desafios aos editores da área de humanidades no periodismo científico e nas redes sociais: reflexões e experiências. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 2, p. 347-364, jun. 2014.

PACKER, Abel L.; MENEGHINI, Rogério. Learning to communicate Science in developing countries. Interciência, v. 32 n.9, p. 643-647, sept. 2007.

PACKER, Abel; COP, Nicholas; LUCCISANO, Adriana; RAMALHO, Amanda; SPINAK, Ernesto (orgs.). Scielo – 15 anos de acesso aberto. Publicado pela Unesco, 2014.

VESSURI, Hebe. Hebe Vessuri discute publicação científica e desenvolvimento na América Latina. Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Disponível em: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/hebe-vessuri-discute-publicacao-cientifica-e-desenvolvimento-na-america-latina. Publicado em março de 2015. Acesso em 19 de julho de 2017.

* Editora-executiva de HCS-Manguinhos. Paper apresentado no simpósio “Os desafios do século XXI para revistas de história da ciência e da medicina”, em 24 de julho de 2017, durante o 25º Congresso Internacional de História da Ciência e da Tecnologia, no Rio de Janeiro.

Como citar este post:

CERQUEIRA, Roberta. Revistas científicas na América Latina: o caso do SciELO. Blog da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, 2017. Publicado em 06 de agosto de 2017. Acesso em 06 de agosto de 2017. Disponível em http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/revistas-cientificas-na-america-latina-o-caso-do-scielo/.

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