Julho/2017
Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz
Dentre as diversas obras que integram a biblioteca de Oswaldo Cruz, chama a atenção um conjunto de títulos que tratam da febre amarela. Ao todo, são 38 publicações, entre livros e relatórios, que remetem ao debate científico sobre a forma de transmissão da doença, ocorrido na virada do século 19 para o 20.
Encontra-se aí uma referência a um autor seminal nesse debate, o médico epidemiologista cubano Carlos Juan Finlay Barres (1833-1915), que defendia a então inusitada, e, por consequência, controversa hipótese da transmissão da febre amarela pelo mosquito Stegomya fasciata (atualmente denominadoAedes Aegypti). De forma suplementar, constam na biblioteca de Cruz as obras Walter Reed (1851-1902) e William Gorgas (1854-1920). Esses médicos militares norte-americanos contribuíram de forma decisiva para a comprovação da hipótese de Finlay.
Reed e sua equipe, James Carroll, Aristides Agramonte, e Jesse Lazear, bacteriologistas militares norte-americanos, foram enviados a Cuba em junho de 1900 para estudar as causas e meios capazes de deter a epidemia de febre amarela que vitimava os soldados que integravam as forças militares norte-americanas. A ilha era ocupada pelos Estados Unidos desde 1898, em meio à guerra de independência travada por Cuba contra a Espanha.
As experiências realizadas pela Comissão Reed, induzindo artificialmente a febre amarela em humanos, verificou e confirmou a transmissão da doença pelo mosquito, orientando a organização de uma campanha sanitária, baseada no isolamento de doentes e extermínio de mosquitos. Conduzida pelo general William Gorgas, a campanha, em seis meses, controlou a doença em Havana.
Esses resultados guardavam analogia com os que vinham sendo produzidos por pesquisadores do outro lado do Atlântico: o médico escocês Patrick Manson (1844-1922), o francês Alphonse Laveran (1845-1922) e Ronald Ross (1857-1932), cujas obras também constam na biblioteca de Oswaldo Cruz. A uni-los, a crença e a comprovação do papel dos mosquitos como transmissores de doenças humanas.
O escocês Manson, reconhecido como o fundador da medicina tropical, foi o primeiro a demonstrar, em 1878, que um parasita que causa uma doença humana poderia infectar um mosquito, e esse, transmitir a doença. Esses achados baseavam-se em suas pesquisas sobre a filária, um verme que causa a elefantíase.
Essa trilha foi percorrida pelos outros dois em seus estudos sobre a malária. Laveran, medico exército francês, identificou, em 1880, o agente que causa a malária, um parasita (plasmodium). Pouco tempo depois, com a continuidade de suas pesquisas, passou a defender a hipótese segundo a qual esse protozoário se abrigava no corpo de mosquitos. Ross, por seu turno, em suas pesquisas na Índia, em 1897, ao dissecar o tecido do estômago de um mosquito do gênero anófeles, alimentado quatro dias antes em um paciente malário, encontrou o parasita da malária, demonstrando o papel dos mosquitos na transmissão de parasitas de malária em humanos. A continuidade de sua pesquisa o conduziria a demonstrar, em 1898, que os mosquitos poderiam servir como hospedeiros intermediários para a malária do pássaro. Os resultados renderam a ambos o prêmio Nobel em medicina: Ross foi agraciado em 1902, e em 1907, foi a vez do médico francês.
Oswaldo Cruz, o leitor das obras sobre febre amarela
Esse conjunto de obras presente na biblioteca de Oswaldo Cruz forma um conjunto coerente de referências sobre a febre amarela na virada do século 19. É revelador do mapa científico e intelectual a partir do qual seu proprietário enquadrou a campanha contra a febre amarela na cidade do Rio de Janeiro, onde surtos epidêmicos letais se sucediam desde meados do século 19.
À frente da Diretoria Geral de Saúde Pública, e com apoio político do presidente da República, Rodrigues Alves, Cruz conseguiu que seu plano de saneamento para a capital federal fosse aprovado pelo Congresso Nacional em dezembro de 1903. Criou o Serviço de Profilaxia contra a Febre Amarela, que baseou sua atuação no método aplicado por Gorgas em Cuba: o isolamento de doentes e vigilância de pessoas não imunes (crianças e estrangeiros), executadas pela polícia sanitária, e o extermínio de mosquitos, realizado pelos mata-mosquitos.
As medidas adotadas tiveram ampla repercussão pública, suscitando críticas ao diretor de saúde e acirrada polêmica entre os médicos sobre a transmissão da doença pelos mosquitos. No entanto, assim como sucedera em Cuba, as medidas surtiram efeito, com o controle da doença já em 1904, e a redução progressiva da mortalidade nos anos seguintes, sem nenhum registro em 1909.
Leia no Blog de HCS-Manguinhos:
Da medicina à arte: a biblioteca particular de Oswaldo Cruz
Conjunto de obras raras está disponível para consulta na Fiocruz
Surto de febre amarela coloca em pauta investimento em infraestrutura sanitária e combate à pobreza, diz historiador
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Em artigo publicado em HCS-Manguinhos, Valter Martins discute o trabalho da Comissão Sanitária do Estado de São Paulo para conter a doença no fim do século XIX
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Ideias de raça influenciaram diagnóstico da febre amarela no Caribe no início do séc. 20
Tara Innis, da Universidade de West Indies, em Trinidad e Tobago, participou de mesa no workshop sobre doenças tropicais realizado na Fiocruz de 1º a 3 de julho
Leia em História, Ciências, Saúde – Manguinhos:
Teorias sobre a propagação da febre amarela: um debate científico na imprensa paulista, 1895-1903, artigo de Soraya Lódola e Edivaldo Góis Junior, vol. 22, n.3, jul.-set. 2015.
Cidade-laboratório: Campinas e a febre amarela na aurora republicana, artigo de Valter Martins, vol.22, n.2, jan./abr. 2015
Antiescravismo e epidemia: “O tráfico dos negros considerado como a causa da febre amarela”, de Mathieu François Maxime Audouard, e o Rio de Janeiro em 1850. Artigo de Kaori Kodama, vol.16, no.2, Jun 2009
A cidade e a morte: a febre amarela e seu impacto sobre os costumes fúnebres no Rio de Janeiro (1849-50). Artigo de Cláudia Rodrigues, vol.6, no.1, Jun 1999
Combates sanitários e embates científicos: Emílio Ribas e a febre amarela em São Paulo. Artigo deMarta de Almeida, vol.6, no.3, Fev 2000
Produzindo um imunizante: imagens da produção da vacina contra a febre amarela. Artigo de Aline Lopes Lacerda e Maria Teresa Villela Bandeira de Mello, vol.10, supl.2, 2003
Da ‘abominável profissão de vampiros’: Emílio Goeldi e Os mosquitos no Pará (1905). Artigo de Nelson Sanjad, vol.10, no.1, Abr 2003
Representação e intervenção em saúde pública: vírus, mosquitos e especialistas da Fundação Rockefeller no Brasil. Artigo de Ilana Löwy, vol.5, no.3, Fev 1999
Dengue no Brasil. Marzochi, Keyla et al., vol.5, no.1, Jun 1998
Visite o hot site sobre o centenário de morte de Oswaldo Cruz:
Oswaldo Inspira: 100 anos sem Oswaldo Cruz (1872-1917)