Dezembro/2016
Minhas recordações de uma entrevista Marcos Cueto, editor científico de HCS-Manguinhos Em 14 de dezembro de 2016 faleceu uma das referências mais importantes da saúde pública global do século XX: o dinamarquês Halfdan T. Mahler. Funcionário da Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 1951, Mahler foi um dos diretores-adjuntos na gestão do brasileiro Marcolino Candau. Foi eleito Diretor Geral entre 1973 e 1988. É considerado por muitos como o arquiteto da Conferência Internacional sobre Atenção Primária à Saúde, realizada em Alma Ata (antiga União Soviética) em setembro de 1978. Em meados de 2004 eu estava pesquisando nos arquivos da Organização Mundial da Saúde em Genebra para um projeto sobre a história da Atenção Primária à Saúde. Sabia da importância de Mahler nesta história e que vivia nos arredores de Genebra, aposentado. Consegui uma entrevista que inicialmente seria de meia hora, mas foi estendida a quase três horas de conversa animada. Além de informações valiosas, os comentários estimulantes me deixaram uma impressão marcante, provavelmente graças à intensidade com que explicou, com clareza e até devoção, conceitos considerados essenciais. Por exemplo, lembro-me da maneira pausada como disse que “justiça social” era um termo sagrado. Além disso, sua voz profunda e vívida, seu olhar penetrante e sua maneira de argumentar pareciam destinados a uma plateia que tinha de persuadir. Confesso que durante a entrevista instintivamente olhei para trás para ver se havia mais pessoas na sala. E confirmei que não havia mais ninguém. Depois me convenci de que ele era uma espécie de pregador de mudanças radicais na saúde pública e que tinha a virtude de fazer as pessoas sentirem que poderiam ser parte de algo importante e significativo. Esta característica pessoal deve ter herdado de seu pai, um pastor batista de destaque. Mas não era só isso. Os quase dez anos de trabalho de combate à tuberculose na Índia o tinham marcado. Não só pela doença, mas pelas pessoas. Ele me contou que em uma de suas primeiras experiências neste país cometeu o erro de revelar a uma mãe que só tinha remédios para cinco de seus seis filhos, e solicitar-lhe o favor de lhe ajudar a decidir quais cinco receberiam tratamento. Recebeu um tapa e uma resposta orgulhosa: “Não vou tratar nenhum”. Ficou em silêncio, mas nunca se esqueceu do incidente. Experiências como esta explicam a sua determinação em defender suas ideias em favor da solidariedade com os pobres e contra a corrente, em um contexto neoliberal adverso como o que começou a predominar no início dos anos 1990. Ele me contou como navegou bravamente entre seus críticos que, até o fim do seu mandato, queriam demonizá-lo, chamando-o de “bispo vermelho de Genebra”. Ligado a isto estava a sua insistência inesgotável para que a Atenção Primária à Saúde não fosse apenas um mecanismo para modernizar o sistema de saúde, mas uma ferramenta para promover o desenvolvimento nos países pobres e a solidariedade entre todos os países. Ao nos despedirmos, teve tempo para fazer uma piada. Me disse que esta manhã uma cobra apareceu no jardim de sua casa (algo incomum para Genebra) e gritou: “İRetrocede, representante da indústria farmacêutica!” Na sequência desta entrevista tive o privilégio de voltar a falar com Mahler e de participar de algumas reuniões sobre a história e os desafios da saúde global. O evento mais inesquecível foi o primeiro seminário sobre a história da saúde mundial organizado pela OMS em janeiro de 2006, no qual participei com Mahler e Elizabeth Fee, então diretora da seção de história da medicina da Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos. Sempre, no final desses eventos, notava como outros líderes da saúde internacional – incluindo aqueles que não pensavam como ele – tratavam-no com algo que qualquer profissional gostaria de ter conquistado no fim de sua carreira: respeito e valorização dos colegas. Não tenho certeza se Mahler estava convencido da importância para a história de justificar a validade da APS. Por outro lado, estou certo de que depois de conhecê-lo me convenci da necessidade de os historiadores de saúde entenderem o presente para interpretar criticamente o passado, e do seu dever de abraçar – pelo menos em silêncio – valores nobres e resilientes como os de Mahler: a justiça social, a solidariedade e a saúde pública como promotora e parte do desenvolvimento. Artigos relacionados em HCS-Manguinhos: Mello, Guilherme Arantes and Viana, Ana Luiza d’Ávila. Uma história de conceitos na saúde pública: integralidade, coordenação, descentralização, regionalização e universalidade. Hist. cienc. saude-Manguinhos, Dez 2012, vol.19, no.4 Mello, Guilherme Arantes and Viana, Ana Luiza d’Ávila. Centros de Saúde: ciência e ideologia na reordenação da saúde pública no século XX. Hist. cienc. saude-Manguinhos, Dez 2011, vol.18, no.4 Campos, Carlos Eduardo Aguilera. As origens da rede de serviços de atenção básica no Brasil: o Sistema Distrital de Administração Sanitária. Hist. cienc. saude-Manguinhos, Set 2007, vol.14, no.3 Brown, Theodore M., Cueto, Marcos and Fee, Elizabeth. A transição de saúde pública ‘internacional’ para ‘global’ e a Organização Mundial da Saúde. Hist. cienc. saude-Manguinhos, Set 2006, vol.13, no.3