Julho/2015
Distante cerca de um dia e meio de barco de Santarém, Pará, às margens leste do Baixo Tapajós, fica Fordlândia – território concedido em 1927 pelo governo brasileiro ao empresário Henry Ford para a plantação intensiva de seringueiras. O projeto durou até 1945, quando o governo brasileiro readquiriu o patrimônio e concedeu seu usufruto ao Instituto Agronômico do Norte, para estabelecer uma estação experimental de agricultura e pecuária.
Em 1949, crianças e jovens nascidos e criados na Fordlândia foram diagnosticados com esquistossomose – doença conhecida como “barriga d´água”. Os médicos Walter Machado e Clarindo Martins confirmaram de que se tratava de um surto autóctone. A doença acarreta várias complicações orgânicas, comprometendo o fígado e causando hemorragia, aumento do baço, hipertensão dos vasos sanguíneos abdominais e extravasamento de líquido linfático para o abdome – daí o nome popular. Lagos, lagoas, pântanos e alagadiços são ambientes propícios para abrigar os caramujos hospedeiros dos vermes do gênero Schistosoma, cujas larvas presentes na água infectam o homem pela pele.
Machado e Martins coletaram caramujos nos igarapés e valas que percorriam o território e enviaram a Samuel Pessoa em São Paulo e a Fritz Haas em Chicago, para serem classificados. A identificação taxonômica e morfológica dos caramujos era na época um dos aspectos mais problemáticos na epidemiologia da esquistossomose. Considerada mundialmente a segunda doença tropical mais importante, atrás apenas da malária, era associada à falta de saneamento e à pobreza de regiões rurais.
Em 1950, o Serviço de Saúde Pública realizou um inventário epidemiológico da região de Fordlândia e identificou a doença em todos os acampamentos, distantes quilômetros entre si. A população era estimada em 1300 pessoas. Entrou em cena então o limnologista alemão Harald Sioli, que, como pesquisador do Instituto Agronômico, analisava as possibilidades de desenvolvimento da agricultura, pecuária e silvicultura na Amazônia. Estudioso das características físico-químicas das águas de diversos rios da bacia amazônica, do perfil de formação geomorfológica e o seu papel na conformação da paisagem, Sioli foi um dos decanos da ecologia tropical. Seu desafio, naquele momento, era entender por que a esquistossomose se manifestara ali, e não em outras áreas que também receberam pessoas oriundas de regiões infectadas. Ele precisava estimar as possibilidades de difusão e estabelecimento da doença na Amazônia.
O trabalho do cientista alemão acerca da esquistossomose na Fordlândia nos anos 1950 foi o tema da apresentação do historiador André Felipe Cândido da Silva no Workshop Doenças tropicais na América Latina e no Caribe – uma perspectiva histórica, realizado de 1 a 3 de julho na Fiocruz, no Rio de Janeiro. O trabalho é parte de um projeto sobre agricultura, ecologia, instituições científicas e políticas de desenvolvimento da Amazônia coordenado por Dominichi Miranda de Sá na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.
De acordo com Cândido da Silva, a visão abrangente que Sioli já tinha dos ecossistemas amazônicos a partir da análise de suas águas e a correlação que já estabelecera entre algumas espécies aquáticas – inclusive os caramujos – e o índice de pH das águas o ajudaram a avaliar o risco de a doença se fixar naquela região. Com pH aproximadamente neutro (de 5,7 a 7,6), os igarapés da Fordlândia favoreciam a presença de caramujos, não encontrados em áreas com ph mais ácido.
A situação sanitária da Fordlândia era, segundo Sioli, calamitosa. Cerca de 36% da população estava contaminada e os métodos químicos de combate do caramujo pareciam não oferecer perspectivas de sucesso. Novos métodos de combate eram necessários.
Sioli sabia que os caramujos só podiam viver onde havia plantas aquáticas flutuantes nas margens dos rios e lagos de água. Para isso o espelho d’água precisava ficar exposto continuamente à irradiação solar. Os cursos d’água na região corriam predominantemente à sombra de floresta ou mata densa, mas não na Fordlândia, que fora devastada para o plantio das seringueiras de Ford e de pastagens para criação de gado. Lá, o ambiente aquático era favorável ao abrigo do caramujo.
Em artigo publicado nos Arquivos de Hidrobiologia em 1955, Sioli sublinha que a esquistossomose foi possível na Fordlândia devido às práticas humanas de modificação do ambiente ocorridas cerca de vinte anos antes. Para combater o caramujo, portanto, era preciso reflorestar as margens dos igarapés, pois a sombra mataria as plantas aquáticas e sem elas o molusco não encontraria onde se fixar.
A proposta de saneamento ecológico de Harald Sioli não chegou a ser posta em prática. Em 1972, inquérito epidemiológico revelou que o foco de esquistossomose da Fordlândia podia ser considerado extinto, o que ocorrera devido ao esvaziamento da região em consequência de sua derrocada econômica e abandono.
De acordo com Cândido da Silva, a atuação de Sioli na esquistossomose chamou atenção de agências internacionais.
“Pretendemos contribuir para o estudo histórico da esquistossomose no Brasil, uma doença que ainda é objeto de pouquíssimos estudos da historiografia cada vez mais densa da história da medicina e saúde pública, principalmente da chamada medicina tropical, apesar da sua alta incidência em nossa história e das importantes contribuições científicas de nossos pesquisadores”, afirmou o historiador.
Leia em HCS-Manguinhos:
História da descoberta da Biomphalaria occidentalis Paraense, 1981, artigo de Laïs Clark Lima (v.6 n.2 Rio de Janeiro jul./out. 1999)
Leia também:
50 anos de pesquisas em limnologia na Amazônia, transcrição de palestra de Harald Sioli publicada em Acta Amazonica (vol. 36, n. 3, Manaus, 2006)
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E no blog de HCS-Manguinhos em inglês/espanhol:
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Como citar este post [ISO 690/2010]:
Harald Sioli e a esquistossomose na Fordlândia, 1950. Blog de HCS-Manguinhos. [viewed 6 July 2015]. Available from: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/harald-sioli-e-a-esquistossomose-na-fordlandia/