Favela, sertão carioca

Junho/2015

Marina Lemle | Blog de HCS-Manguinhos

Espaço onde historicamente o poder público não se faz presente, o sertão, numa dimensão metafórica, vai muito além da dimensão geográfica, o que explica o título intrigante do seminário “A cidade entre o mar, o sertão e a floresta”, realizado em 10 de junho no Museu do Meio Ambiente, no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, como parte das comemorações pelos 450 anos da cidade.

Nísia Trindade Lima

Quem trouxe a metáfora para discussão foi a socióloga Nísia Trindade Lima, pesquisadora titular da Casa de Oswaldo Cruz e vice-presidente de Ensino, Informação e Comunicação da Fiocruz.

“Há uma proximidade simbólica entre favela e sertão”, afirmou, lembrando que a palavra ‘favela’ tem origem em planta do mesmo nome que, por sua abundância, designava um dos morros de Canudos e passou a nomear o morro do Rio de Janeiro para onde vieram soldados que haviam combatido os seguidores de Antonio Conselheiro.

Nísia fez referência ao livro “A invenção da favela”, de Licia Valladares, e destacou que a generalização do termo para os aglomerados urbanos de característica semelhante, no início do século XX, faz pensar nesse encontro ainda hoje tenso e polêmico entre Canudos e civilização urbana, entre campo/sertão e cidade. A violência militar imposta contra a população pobre que ali vivia também sugeriria um paralelo histórico de tensão política e falta de direitos sociais.

Para Nísia, a celebração do aniversário da cidade é uma ocasião para se olhar para as favelas e refletir sobre o dualismo que contrapõe a sociedade moderna e a atrasada, a civilização e a falta dela. “A favela é um avesso da cidade que raramente aparece nas comemorações”, disse. Uma exceção seria o livro Rio 400+50, organizado pela historiadora Maria Inêz Turazzi, que estampa o contraste em foto de Cesar Barreto.

Foto: Cesar Barreto / cidadeolimpica.com

De acordo com Nísia, foi na década de 1950 que a favela começou a ser vista como problema e como solução para pessoas pobres que trabalham na cidade. Ela evocou a obra do antropólogo Anthony Leeds, autor do livro “A sociologia do Brasil urbano”, que destaca a dinâmica econômica, social e política da vida na favela incorporada à cidade. Leeds contava com uma rede de informantes em várias favelas da cidade, e ele próprio morou no Jacarezinho. O antropólogo reuniu em seu acervo entrevistas e fotos de moradores devidamente identificados, registros de atividades econômicas, como a feira da Rocinha, e de atividades políticas, como reuniões de associações de moradores.

“Pensar favela não é só pensar na solução ou no problema, mas discutir pobreza urbana, contexto social e político e relações de poder. Entender o passado ajuda a pensar o presente”, concluiu Nísia.

Planejamento integrado para virar modelo de sustentabilidade

Fabio Scarano

O presente e o futuro foram o foco do engenheiro florestal e ecólogo Fabio Scarano, diretor executivo da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável, professor da UFRJ e autor principal para os Painéis Brasileiro e Intergovernamental de Mudanças Climáticas. Otimista, ele acredita que o Rio, com sua riqueza natural única e sua geografia “dramaticamente bonita”, pode vir a ser um modelo de cidade sustentável.

O ponto forte da cidade, segundo Scarano, é o cinturão verde que ela mantém, graças ao reflorestamento bem sucedido da floresta da Tijuca, iniciado por D. Pedro II após grande devastação para plantio de café, e fortalecido nos últimos 30 anos nos morros cariocas, em especial no Morro da Babilônia, onde famílias já vendem mudas para serem plantadas em outros morros. Segundo Scarano, o Rio tem um déficit de um milhão de árvores, principalmente na zona Norte.

“O Rio pode fazer com que a natureza seja restaurada  e criar empregos para isso, tirando gente da pobreza e da situação de vulnerabilidade. Os pobres são mais vulneráveis a mudanças climáticas e desastres naturais. É preciso torná-los menos vulneráveis”, afirmou.

Para Scarano, o grande problema a ser enfrentado é a falta de planejamento integrado. “Coisas relativamente simples poderiam estar sendo feitas para melhorar a qualidade de vida da população e gerar empregos”, disse. De acordo com o professor, em todos os setores há gente muito boa, mas não há formação interdisciplinar. “Falta diálogo e gente para facilitá-lo. Muitas soluções já estão em implementação, mas muitas vezes não as conhecemos. Precisam ser mapeadas pra ganhar visibilidade e escala”, afirmou.

Leia em HCS-Manguinhos:

Os intelectuais e as representações da nação: um sertão chamado Brasil, artigo de Marcos Cezar de Freitas sobre livro de Nísia Trindade Lima (vol. 8, n. 3, dez 2001)

A conquista do espaço: sertão e fronteira no pensamento brasileiro, artigo de Lúcia Lippi Oliveira (vol. 5, jul. 1998)

Visões do deserto: selva e sertão em Euclides da Cunha, artigo de Roberto Ventura (vol. 5, jul. 1998)

Desenvolvimento sustentável: debates em torno de um conceito problemático, artigo de José Augusto Drummond (vol.5, n.3, fev 1999)

Como citar este post [ISO 690/2010]:
Favela, sertão carioca. Blog de HCS-Manguinhos. [viewed 11 June 2015]. Available from: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/favela-sertao-carioca/