Março/2015
Carlos Fioravanti | Revista Pesquisa Fapesp
Em 1922, ao voltar de uma temporada de sete anos trabalhando como médico em Paris, Manoel Dias de Abreu encontrou a cidade do Rio de Janeiro acossada por uma dramática epidemia de tuberculose. O que ele viu reforçou sua crença de que o controle da tuberculose só seria possível por meio do diagnóstico em massa da população. Os doentes chegavam aos hospitais em estado grave, quando o tratamento e o isolamento eram inúteis para conter a morte iminente. Abreu pouco pôde fazer naquele momento, mas retomou o trabalho iniciado na França para desenvolver uma técnica de diagnóstico precoce de tuberculose de uso amplo e baixo custo.
No antigo Hospital Alemão, onde chefiava o serviço de radiologia, com um aparelho que havia criado, ele conseguiu finalmente em 1936 as primeiras imagens nítidas que lhe permitiam ver sinais de tuberculose ainda não detectados por outras técnicas de diagnóstico. Os engenheiros da Casa Lohner, uma subsidiária da Siemens no Rio, construíram os primeiros aparelhos a partir de desenhos do próprio médico, mas não acreditavam que iriam funcionar. Combinando as técnicas de radiologia e de fotografia, a máquina emitia um feixe de raios X, que sensibilizava uma tela que se tornava fluorescente e produzia uma imagem visível a olho nu, captada por uma câmera fotográfica.
“A imagem era registrada em filmes de 35 milímetros, muito mais baratos que os em voga naquele momento, de 30 x 40 centímetros, típicos de outros processos concorrentes, como a radiografia”, relatou o jornalista e historiador Oldair de Oliveira no livro O mestre das sombras – Um raio X histórico de Manoel de Abreu, editado em 2012 pela Sociedade Paulista de Radiologia. “Apesar da menor dimensão do filme, o registro era plenamente eficaz para o diagnóstico, bastando o uso do negatoscópio ou de uma lente de aumento.”
Chamado pelo próprio Abreu de roentgenfotografia, o novo método ganhou o nome oficial de abreugrafia em 1939, como decisão unânime dos médicos que participaram do I Congresso Nacional de Tuberculose. A abreugrafia permitiu o diagnóstico e o tratamento precoce de pessoas com tuberculose que, embora sem sintomas, poderiam transmitir a doença para outras, desse modo ajudando a conter a disseminação da doença, controlada efetivamente com o uso de antibióticos, a partir da década de 1950. Quem tem mais de 40 anos talvez ainda encontre sua própria abreugrafia perdida em alguma gaveta ou entre os documentos pessoais dos pais, porque durante muitas décadas esse era um exame obrigatório para matricular as crianças nas escolas e ao ingressar em um emprego novo.
Paulista nascido em 1892, Abreu viveu em Lisboa e Paris depois de se formar pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. No Nouvel Hôpital de la Pitié, ele desenvolveu novas técnicas para fotografar peças cirúrgicas e, usando os então recém-descobertos raios X, identificou um caso de tuberculose que tinha escapado aos exames de seu chefe, um médico muito mais experiente. Em outro hospital, Abreu se aprofundou na radiologia dos pulmões, criou a densimetria, uma técnica para medir as diferentes densidades do pulmão, e imaginou que a fotografia da tela fluorescente do aparelho de raios X poderia ser um meio de diagnóstico de baixo custo.
“Infelizmente, obstáculos técnicos o impediram de desenvolver a abreugrafia já em 1919”, observa Rubens Bedrikow, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, em um artigo no Jornal de Radiologia. Depois de construir uma máquina segura, Abreu trabalhou pelo uso intensivo do novo método no combate à tuberculose. Segundo Bedrikow, em apenas duas semanas de uso, o primeiro aparelho, instalado em um centro de saúde do Rio, foi usado para examinar 758 pessoas e detectou 44 com lesões pulmonares.
A técnica, por ser simples, de baixo custo e permitir a identificação também de sinais de câncer e doenças do coração, rapidamente se disseminou e foi incorporada pelos serviços públicos de saúde do Brasil e de outros países. Seu uso intensivo foi criticado e limitado, até que a exigência da abreugrafia para matrícula escolar e emprego foi abolida no fim da década de 1970. Muito homenageado e indicado três vezes para o Prêmio Nobel, Abreu publicou livros de poesias, alguns ilustrados por Di Cavalcanti e outros por ele próprio. Por ironia, tratando-se de um pneumologista, morreu de câncer de pulmão em 1962. Era um fumante incorrigível.
Fonte: Revista Pesquisa Fapesp
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