Março/2015
Marina Lemle | Blog de HCS-Manguinhos
“Pensar o feminino hoje é como descrever um tsunami enquanto somos enrolados por ele”. Com esta metáfora, a escritora e membro da Academia Brasileira de Letras Rosiska Darcy de Oliveira abriu a sua fala no painel “Os diferentes tempos do feminino”, realizado em 4 de março na Escola Nacional de Botânica Tropical, como parte das comemorações da Semana da Mulher promovida pelo Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ). Também participaram do evento a filósofa Carla Rodrigues, a historiadora Begonha Bediaga e a presidente do JBRJ, Samira Crespo, como mediadora.
Para Rosiska, estamos vivendo mais que uma mudança de geração, mas uma mudança de era, o que é um privilégio para quem a vive. “É um testemunho de uma época em que se dá a ruptura do paradigma milenar da separação dos mundos dos homens e das mulheres. É uma sensação de tsunami em que o chão foge aos pés, porque os referenciais mudam”, disse.
De acordo com a escritora, no século XXI, as meninas ganharam em liberdades e opções, mas não impunemente, e o preço tem sido pago nas vidas pessoais. “A imagem no espelho era ruim mas confortável. Se antes a demanda era de esposa e mãe, hoje vivemos um fenômeno migratório da mulher da vida privada para o mundo do trabalho. Não se espera que seja apenas esposa e mãe, mas também profissional, estudante e cidadã. Isso é uma revolução, mas a sociedade não passa recibo”, observou.
Para Rosiska, o desafio maior é o uso do tempo, já que tudo mudou, menos as 24 horas do dia. “As mulheres querem não só igualdade de direitos mas o direito à diferença”, ressaltou. Ela acrescentou que as ideologias e religiões entraram em crise e hoje cada mulher se confronta consigo mesma em busca um destino feliz.
“Feminino é uma autoria que as mulheres estão buscando. Hoje o destino precisa ser inventado. É um privilégio e um risco inventar alguma coisa e fazê-la acontecer”, afirmou. Ela incentivou as mulheres – maioria absoluta no auditório lotado – a fazer uma reengenharia do tempo, reestruturando-se, dignificando-se e afirmando o direito à dignidade e a serem reconhecidas como cidadãs.
“A ética é o reconhecimento do outro. Vamos impor uma ética do feminino. Ter um olhar aberto para o que está em volta – o país, o mundo – e, com os recursos que tivermos, afirmarmos valores que estão emergindo da presença do feminino na cultura. Estamos saindo da invisibilidade e existindo como ser humano”, concluiu.
Feminismo também para os homens
Carla Rodrigues, que durante anos atuou como jornalista, contou como refez sua trajetória profissional e ingressou na vida acadêmica, doutorando-se em filosofia e dedicando-se à pesquisa da teoria feminista.
Ela observou que o termo “feminista” virou uma espécie de palavrão, carregado de estereótipos como gorda, feia, lésbica ou mal-amada, e que ainda existe um ranço de que, para a mulher ter poder, seria preciso tirar o poder de alguém – no caso, dos homens.
“Só vamos avançar se eles forem nossos parceiros. Não é um combate entre homens e mulheres, eles não são nossos inimigos”, enfatizou.
Carla destacou a importância do feminismo inclusive para os homens, por ajudar a não fundamentar papéis sociais para um e para outro. “O movimento feminista é muito bom para os homens porque também os liberta de padrões e modelos”, esclareceu.
A professora do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ lembrou que o movimento feminista surgiu na modernidade, num momento em que o espaço público, onde a cultura se constrói, era dos homens, enquanto as mulheres estavam confinadas ao espaço doméstico, que seria seu destino “natural”. Aquelas que questionavam isso e reivindicavam participar da vida pública iam parar na guilhotina da Revolução Francesa.
“Separar natureza e cultura é uma pretensão falsa. É preciso repensar esta separação para que homens e mulheres ocupem os dois campos”, afirmou.
Segundo Carla, a tensão entre os dois pólos – o direito a igualdade e o direito a diferenças – se mantém historicamente e ainda pauta as teorias feministas. Um exemplo é o mercado de trabalho, onde as oportunidades continuam desiguais, cabendo às mulheres postos de remuneração inferior e vínculos mais precários, em todo o mundo. Para a professora, a solução é não insistir em oposições binárias que sustentam divisões desiguais, como só natureza ou só cultura, só público ou só privado, só feminino ou só masculino, em que uma exclui a outra.
“Estas separações são impossíveis na prática. Precisamos formular uma dupla resposta, na qual a igualdade não é a antítese da diferença, e repensar as dualidades. Nem igual nem diferente: singular. Inventar é o verbo do nosso tempo”, concluiu.
Maria Bandeira, pesquisadora pioneira do JBRJ
A historiadora Begonha Bediaga comoveu o público – formado em grande parte por funcionárias do Jardim Botânico – ao contar a trajetória de Maria Bandeira (1902-1992), a primeira pesquisadora da instituição.
Maria Bandeira ingressou no Jardim na década de 1920, onde contribuiu para o crescimento das coleções científicas. Praticante de alpinismo, realizou coletas em locais de difícil acesso. Por ser fluente em idiomas, fez contatos com cientistas estrangeiros, fortalecendo a rede científica internacional da instituição. Chegou a estudar na Sorbonne, em Paris, mas, após o falecimento de seus pais, acabou abandonando seu trabalho científico para ingressar no Convento das Carmelitas Descalças, em Santa Teresa, em 1931, apesar da resistência da família.
Como a botânica assinava suas coletas com “M. Bandeira ou M. C. Bandeira”, anos se passaram sem que se percebesse de que se tratava de uma mulher. A ausência de publicações de trabalhos científicos onde constariam seu nome completo – talvez devido à sua condição feminina – contribuiu para o desconhecimento a seu respeito.
Os motivos que a levaram a esta decisão são desconhecidos. Um hipótese seria a insegurança de seguir na carreira sem um amparo masculino, numa época em que mulheres solteiras sofriam preconceitos. Para Begonha, a clausura religiosa pode não ter sido uma fuga, como pensa a família, mas sim uma opção – uma forma de se reinventar e se afirmar como autora da própria vida. Leia artigo de Begonha sobre Maria na revista Polish Botanical Journal (em inglês).
Leia no blog de HCS-Manguinhos:
Feminino é uma autoria que as mulheres estão buscando’ – Mais trechos da fala de Rosiska
Saúde reprodutiva, triste realidade
Em entrevista, Cassia Roth, da Universidade da California em Los Angeles, relaciona as políticas voltadas para a reprodução no Brasil há um século e a situação atual
Coleções de Joséphine
Botânica, arqueóloga e feminista, Joséphine Schouteden-Wéry estudou espécies da Bélgica ao Congo. Alda Heizer e Aline Cardoso Cerqueira contam a sua história em HCS-Manguinhos.
Leia em História, Ciências, Saúde – Manguinhos:
Proeminência na mídia, reputação em ciências: a construção de uma feminista paradigmática e cientista normal no Museu Nacional do Rio de Janeiro, artigo de Maria Margaret Lopes sobre Bertha Lutz (vol.15, 2008)
Direitos femininos no Brasil: um enfoque na saúde materna, Leite, Ana Cristina da Nóbrega Marinho Torres and Paes, Neir Antunes (set 2009, vol.16, no.3)
Reprodução, sexualidade e poder:as lutas e disputas em torno do aborto e da contracepção no Rio de Janeiro, 1890-1930, Silva, Marinete dos Santos (dez 2012, vol.19, no.4)
A dinâmica hospitalar da Maternidade Dr. João Moreira, em Fortaleza, nas primeiras décadas do século XX, Medeiros, Aline da Silva (set 2013, vol.20, no.3)
‘Barrigão à mostra’: vicissitudes e valorização do corpo reprodutivo na construção das imagens da gravidez, Vargas, Eliane Portes (mar 2012, vol.19, no.1)
Conciliar o útil ao agradável e fazer ciência: Jardim Botânico do Rio de Janeiro – 1808 a 1860 – artigo de Begonha Bediaga (vol.14, no.4, dez 2007)
Como citar este post [ISO 690/2010]:
Tsunami feminino. Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos. [viewed 8 March 2015]. Available from: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/tsunami-feminino/