Quando o Império morreu de sede

Fevereiro/2015

Rodrigo Elias e Marcello Scarrone | Revista de História

Rio de Janeiro, capital do Império, início de 1889. O clima é quente. Auge do verão, a cidade alterna períodos de calor e secura com dias de chuvas torrenciais. Não há um sistema de esgoto eficiente. Áreas alagadiças no entorno do centro urbano favorecem a proliferação de mosquitos, hospedeiros de doenças que assolam toda a população desde os tempos da colônia. No final do século XIX, médicos e cientistas já haviam percebido a relação entre epidemias tropicais e a má-gestão da água.

As semanas passam, as chuvas rareiam. O calor aumenta. Com ele, a febre amarela. Aqueles que podem, tomam o trem e sobem a serra de Petrópolis. Aproveitam, como Pedro II e sua família, o clima ameno da cidade imperial. Na corte do Rio de Janeiro, fica quem tem que trabalhar. Ou seja, a maioria da população.

Dois de fevereiro. A epidemia aumenta. A Revista Illustrada, tocada pelo redator-caricaturista Angelo Agostini, propõe “medidas sanitárias” para resolver o problema. Entre elas, aumentar o abastecimento de água. Ao longo do mês, o problema se agrava. No dia 9, o mesmo semanário denuncia a situação alarmante: enquanto o surto de febre mata crianças indefesas, os funcionários do governo não fazem nada além de consultar livros e escrever ofícios.

O carnaval vai, a febre amarela fica

Final de fevereiro. O carnaval se aproxima. Os problemas continuam. Mas o que importa é a festa. O centro das atenções, no início do mês seguinte, é a Rua do Ouvidor. A rua é estreita, mas é ali que passa o Zé Pereira abrindo os festejos, no domingo. Na segunda-feira, Os Tenentes do Diabo. Os últimos a passar, levando o público nas janelas à loucura, na terça-feira, são Os Democráticos e Os Fenianos.

Na semana seguinte ainda se fala na festa, mas a maior preocupação é outra. A mesma Revista Illustrada abre os olhos do público: o carnaval vai embora, a febre amarela volta para ceifar mais vidas e os ministros, sempre distantes das necessidades reais da população, voltam para o ameno refúgio em Petrópolis. A primeira página da edição de 9 de março traz uma charge que ironiza o ministro da Agricultura, Rodrigo Silva, que tropeça na questão da falta d’água.

Agora o problema divide a opinião pública. De um lado, partidários do governo, como José do Patrocínio, que abandonou a causa republicana, eternamente grato à princesa Isabel. A tribuna de Patrocínio é o jornalCidade do Rio, que dirige. Do outro lado, críticos do Império, como Rui Barbosa. Seu palanque é o Diário de Notícias, que assumira naquele mesmo mês de março.

O jornal de Patrocínio tenta minimizar a crise. Diz, na edição de 9 de março, que o problema não é deste governo (o jornal governista conseguia livrar a cara de um governo que já tinha quase cinco décadas). A falta d’água, argumentava, é uma questão antiga e, para resolvê-la, é necessário pelo menos um ano de trabalho. Sabe-se que os dois meses de estiagem, aliados às altas temperaturas e ao aumento do consumo de água – reflexo, sobretudo, das questões sanitárias – transformava o problema em uma verdadeira crise de abastecimento. Portanto, a responsabilidade, na visão da imprensa aliada ao governo, era dos administradores anteriores, do clima e, é claro, das pessoas que consumiam água.

O povo vai às ruas pela água

O editorial do Diário de domingo, 10 de março, na primeira página, afronta o governo sem rodeios. A febre amarela, que já tomou a cidade e agora se alastra pelo interior, é apenas uma consequência. A causa, a seca. A solução: “água, água, água”. O governo, diz a matéria, não a coloca ao alcance da população por que não quer. Aponta uma possível saída: as águas da Serra do Comércio, a cerca de sessenta quilômetros ao noroeste da cidade, atual Baixada Fluminense. A redação do jornal ouve alguns especialistas e declara ao público que o problema pode ser resolvido em apenas seis dias. O editorial tem como alvo o Ministério da Agricultura, que barganha os preços de mananciais próximos à corte. Seus donos pedem 470 contos de réis. O ministério oferece quatrocentos – a falta d’água era, para os entes privados que controlavam as suas fontes, uma ótima oportunidade para lucrar.

O jornalista é enfático: “Estamos vendidos à peste por setenta contos de réis” (em anúncios do Jornal do Commercio daquele mesmo ano, o preço de uma chácara em uma região próxima ao centro da cidade podia variar entre trinta e cinquenta contos). Mas não fica nas afirmações. Convoca a população: “Se o povo do Rio encher a rua e disser que quer e terá água, tê-la-á.” A discussão ganha as ruas.

No dia 11, o jornal de Rui critica novamente o governo, divulgando o número de mortos pela febre. A reação popular é imediata. No dia seguinte, terça-feira, 12 de março, cerca de duas mil pessoas marcham no centro da cidade em um protesto pedindo água – uma quantidade nada desprezível para as demonstrações públicas na época. O povo carrega estandartes e cobra providências. O movimento é desqualificado pelo jornal Cidade do Rio, que o chama de “passeata fúnebre”.

Um dia antes do protesto, entretanto, o governo já se via encurralado, situação que só se tornou mais urgente com o povo na rua. Rodrigo Silva procura o Diário de Notícias para entrar em contato com os engenheiros que prometeram acabar com a seca em seis dias. O jornal, controlado por Rui Barbosa, dá os nomes de José Américo dos Santos e de Luís Carlos Barbosa de Oliveira, profissionais experientes. No mesmo dia, o ministro incumbe o primeiro de levar a cabo as obras. Deveria desviar as águas da Serra do Comércio (atual Maciço do Tinguá, na Baixada Fluminense) para as cabeceiras do rio Tinguá, que também abastecia a corte. O editorial da edição de terça-feira, 12 de março, dia do protesto, aplaude a iniciativa do ministro. Elogio precipitado.

O engenheiro explicou ao ministro que conseguiria realizar a obra em pouco tempo, mas em apenas seis dias seria impossível. O ministro, vaidoso, diz que não há negociação. Seis dias ou nada. Obviamente, a tribuna de Rui não deixa barato. Diz que, caso o projeto tenha a previsão superior a seis dias, que a capital morra de doenças e sede – assim pensa o Ministério da Agricultura e, consequentemente, todo o governo. As palavras do editorialista expõem, assim, a aliança entre a inoperância e a arrogância em um dos mais importantes ministérios do Império.

É a oportunidade que o governo esperava para tomar as rédeas da situação. Outros engenheiros aproveitam a chance de entrar em um negócio rentável. Propostas são feitas através dos jornais, estipulando prazos para a solução do problema, que variam entre um mês e quarenta dias. Rodrigo Silva rejeita todas. O ministro anuncia que vai fazer as obras “administrativamente”, ou seja, com pessoal, recursos e projeto do próprio governo, sob a responsabilidade do diretor das águas da corte, Francisco Bicalho. Prazo estipulado: quarenta dias.

A solução de Paulo de Frontin

O jornal governista de Patrocínio precipita-se e dá o caso por encerrado. Na primeira página, anuncia: “Está resolvida a questão do abastecimento de água.” Dá mais alguns detalhes do plano do governo, como a limpeza das tubulações de esgoto. Informa ainda que a epidemia diminuiu, desaprovando a atitude de certas pessoas que, “irresponsavelmente”, culpam o governo por tudo. Porém, no mesmo dia, o Diário lembra a promessa feita pelo ministro da Agricultura, há menos de uma semana, no Jornal do Commercio: se alguém apresentar um plano para trazer água à corte no prazo de seis dias, o governo não poupará despesas para concretizá-lo.

Sábado, 16 de março de 1889. Primeira página do Diário de Notícias, “Água em seis dias!” Sob este título, é publicada uma carta assinada por Paulo de Frontin. Seu autor, à época com 39 anos, um professor da primeira instituição do país dedicada à engenharia civil, a Escola Politécnica do Rio de Janeiro, propõe aumentar o abastecimento de água da cidade em 15 milhões de litros diários (o abastecimento normal, sem a se­ca, era de 70 milhões de litros). Diz que o prazo de seis dias é razoável e dá o preço de oitenta contos de réis. A compra dos mananciais, por sua vez, ficaria em menos de noventa contos.

O jornal de Patrocínio, que também recebeu a carta, faz troça com o ilustre desconhecido que quer, em um prazo menor do que aquele em que o Criador fez o mundo, matar a sede do povo.

Rodrigo Silva, já com a palavra publicamente empenhada e coagido pelo imperador, que o mandou analisar a “proposta do moço”, não tem o que fazer a não ser assinar o contrato.

No dia seguinte, um domingo, o Diário de Notícias afirma que, assinando o contrato com Paulo de Frontin, o Ministério da Agricultura assinou moralmente a própria demissão. Mas Silva não foi ingênuo. Apostou no fracasso de Frontin. Estipulou multas exorbitantes para cada dia de atraso. Não previa nenhuma garantia ao engenheiro no caso de imprevistos naturais ou descumprimentos por parte do governo. Aparentemente, estava mais preocupado em salvar a pele do governo frente às críticas da imprensa e das ruas do que em resolver efetivamente o problema de forma ágil e eficiente.

No mesmo dia parte a primeira turma de engenheiros e operários do Largo de São Francisco, sede da Escola Politécnica, cujo prédio abriga atualmente o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, seguindo para a Serra do Comércio. O governo, que havia prometido ajuda no transporte da tubulação, nada faz. Segundo o jornal situacionista Cidade do Rio, tudo não passou de um mal-entendido. Já percebendo que havia comprado uma briga perdida, o periódico muda o tom. Diz que o povo pediu água e “água há de vir”.

Na segunda-feira, pouco antes das oito da noite, Paulo de Frontin parte do centro com uma comitiva de trezentas pessoas. Depois de uma hora, chegam à estação da estrada de ferro Rio do Ouro, na ponta do Caju. Enquanto os engenheiros conversam na plataforma de embarque, o trem parte. Às pressas, funcionários conseguem uma máquina e vão atrás do trem, fazendo-o parar. Os engenheiros não fazem cerimônia e embarcam em um vagão de bagagem, que é conduzido até o comboio.

O número de trabalhadores ainda é insuficiente. Os jornais publicam anúncios da Comissão Frontin convocando operários para a obra na serra, pagando cinco mil-réis a diária. Na quarta-feira, dia 20, já são quinhentos trabalhadores que, sob chuvas torrenciais, abrem cinco quilômetros de valas. Todos os dias candidatos se alistam para participar das obras. O leque social que os abrange é vasto. De “simples” trabalhadores braçais e estudantes de engenharia a médicos voluntários, entusiasmados com a iminente vitória da razão científica e da mobilização popular sobre as politicagens do governo central.

Água em seis dias

Na quinta-feira, dia 21, já são quase mil trabalhadores, mesmo sem a ajuda de operários prometidos pelo Império. Em telegrama, o correspondente do Diário de Notícias resume a situação: “Geral êxito, esplêndido triunfo.” No dia seguinte, 350 homens sob a orientação do engenheiro Carlos Sampaio abrem uma vala de quatro quilômetros e fazem uma calha com folhas de zinco ligando a cachoeira de Macuco a um novo reservatório, construído havia apenas dois anos, chamado Barrelão. Frontin organiza e distribui o trabalho em outras subcomissões, que, no mesmo compasso, vão dando cabo do projeto.

No sábado, Frontin descansou.

Os correspondentes enviam mensagens aos seus respectivos jornais e revistas, informando a vitória da empresa. A quantidade de água conseguida pelas obras é superior aos 15 milhões de litros propostos pelo engenheiro. A engenharia oficial, junto com o ministro e o diretor de águas, haviam, por outro lado, sido colocados em xeque. É o que noticia o Diário na edição de domingo, dia 24. Sua edição de segunda-feira, obviamente, tripudia sobre a desmoralizada burocracia imperial. Conclama Rodrigo Silva e Francisco Bicalho a dar vivas a Paulo de Frontin.

O engenheiro chega à corte naquela mesma segunda-feira. Ao contrário do povo, Rodrigo Silva não vai recebê-lo. Muito menos Francisco Bicalho, o responsável pelas águas da corte, que teve oito anos para resolver o problema de abastecimento. Tão falastrão quanto Silva, havia dito uma semana antes que o trabalho não poderia ser feito em menos de seis meses. Mas, tentando se redimir, o governo anuncia um contrato com Frontin para manutenção das obras. O agora ilustre personagem é conduzido com festa pelas ruas do centro, seguindo para a Rua do Ouvidor, onde discursa em frente às redações dos jornais. Entra na sede do Diário de Notícias e diz que a glória é do jornal.

O diário de José do Patrocínio, por sua vez, contemporiza. Na edição de terça-feira, aplaude o engenheiro, mas também louva o governo. Diz que sem o apoio e a compreensão do ministro Rodrigo Silva, os esforços de Frontin seriam inúteis.

A charge publicada no dia 30 de março pela Revista Illustrada, com toda a força das alegorias elaboradas por Angelo Agostini, resume todo o episódio. As águas trazidas por Frontin arrastam toda a ineficiente estrutura do governo, incluindo o ministro tagarela.

Pouco mais de seis meses depois o Império cairia, efeito de um movimento de militares descontentes e republicanos conspiradores. Mas suas engrenagens ineficazes já haviam sido expostas ao público por um desconhecido engenheiro e 17 milhões de litros de água. Em apenas seis dias.

Rodrigo Elias é editor e Marcello Scarrone é pesquisador da Revista de História da Biblioteca Nacional. Uma versão anterior deste artigo foi publicada na revista Nossa História, em setembro de 2004.

Fonte: Revista de História

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