Fevereiro/2017
Glauber Gonçalves | Casa de Oswaldo Cruz
Com artigos que abordam temas que vão da implementação do sistema antropométrico nas polícias de Argentina, Uruguai e Brasil a partir da última década do século 19 à esterilização de milhares de pessoas em abrigos e hospitais públicos no estado norte-americano da Califórnia entre as décadas de 1920 a 1950, a revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos publica uma edição especial que revisita, numa perspectiva transnacional, o conceito de “eugenia latina”, proposto no livro A hora da eugenia, publicado em 1991 por Nancy Stepan.
“Este número especial nos leva a refletir sobre a persistência de práticas eugênicas mesmo após a Segunda Guerra Mundial e a correspondente desestruturação da eugenia como movimento organizado”, afirmam os editores convidados em sua carta. “A eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, o crescimento de movimento xenófobos na Europa, a insistente presença da ideia de ‘raça’ e o fortalecimento de uma pauta contrária aos direitos das minorias no Brasil e na América Latina mostram a atualidade do tema tratado.”
O artigo que abre este número de HCS – Manguinhos discute o pensamento do historiador inglês Robet Southey, autor de History of Brazil, para quem a mistura de raças que teve lugar na América lusitana teria sido positiva por legar aos seus herdeiros o temperamento empreendedor português e a infatigabilidade indígena. A autora do artigo observa que a possibilidade de o clima alterar o temperamento de pessoas não nativas de determinada região era crença difundida desde antes mesmo do descobrimento do continente americano.
Esta edição traz uma análise das conexões e diálogos internacionais que envolveram a eugenia brasileira no início do século 20. Partindo dos projetos eugênicos e das controvérsias entre Renato Kehl e Edgard Roquette-Pinto, duas lideranças do movimento eugênico brasileiro, o autor investiga o contato deles com os movimentos eugênicos de países como EUA, Alemanha, Inglaterra, Suécia e Noruega, e busca demonstrar que as conexões desses pesquisadores com a “linha dominante” do pensamento eugênico foram mais amplas e difusas do que se supunha.
Outro artigo aborda os estudos biotipológicos regionais e a construção dos discursos biodeterministas sobre a identidade brasileira nos anos 1930. Nesse contexto, pesquisas biotipológicas foram realizadas para determinar o tipo corporal normal do brasileiro, destacando-se aquelas sobre o perfil corporal de regiões específicas, como Nordeste e São Paulo. O autor demonstra que tais estudos reverberaram visões racialistas, normalizadoras e excludentes e contribuíram para a construção de uma identidade corporal brasileira miscigenada.
Este número inclui ainda um artigo que traz à tona uma vertente punitiva e coercitiva da eugenia franquista, na Espanha, e sua participação na brutal repressão aos inimigos do regime, constituindo sua identidade como antiespanhola. O estudo aponta que a Igreja Católica aceitou a eugeneia, sempre que esta não estivesse vinculada ao neomaltusianismo nem defendesse a esterilização, os métodos contraceptivos e o aborto. Outro trabalho se detém sobre estudos datados da década de 1990 acerca da presença dominante da eugenia positiva na Argentina moderna.
Completam a edição uma avaliação crítica da participação dos eugenicistas portugueses na “eugenia latina”; um artigo sobre a projeção internacional do estatístico e eugenista italiano Corrado Gini e sua nomeação como presidente inaugural da Federação Latina Internacional de Sociedades Eugênicas; e um estudo que joga luz sobre os primeiros passos na peculiar aliança estabelecida entre evolucionismo, medicina e racismo científico no Brasil desde a década de 1870, a partir da trajetória do médico, jornalista e militante republicano Domingos Guedes Cabral.
A seção depoimento deste número traz duas entrevistas. Na primeira, Warwick Anderson, um dos principais historiadores de ciência e raça da Austrália, discute sua preocupação atual com a circulação de conhecimentos raciais e materiais biológicos, além da formação de redes de estudos raciais no sul global durante o século 20. O segundo entrevistado é o historiador e diretor do Lemann Institute, Jerry Dávila, brasilianista e especialista nas relações entre eugenia, raça e educação. Entre outros temas, ele fala sobre os desafios em torno das pesquisas sobre eugenia na atualidade.
Acesse o sumário da edição (vol.23, supl.1, dez. 2016)