Outubro/2020
Marina Lemle | Blog de HCS-Manguinhos
Considerada um grande triunfo científico, teve repercussão internacional a descoberta, em 1909, que era uma Leishmania o agente causal das “úlceras de Bauru”, epidêmicas na cidade paulista. Pela primeira vez, um diagnóstico parasitológico de leishmaniose era feito no hemisfério ocidental.
Esta e outras contribuições que levaram à inclusão de pesquisadores e institutos sul-americanos na história global das leishmanioses foram estudadas pelo historiador Denis Guedes Jogas Junior em seu doutorado na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Com orientação de Jaime Larry Benchimol e Simone Petraglia Kropf, ele produziu a tese Leishmaniose tegumentar americana em perspectiva histórica e global (1876-1944), que lhe rendeu, em setembro, uma menção honrosa do Prêmio Oswaldo Cruz de Teses na categoria Ciências Humanas e Sociais.
“Médicos e demais pesquisadores sul-americanos produziram conhecimentos originais em todas as dimensões da doença: caracterização clínica, transmissores, epidemiologia e terapêutica. Seus relatos eram conhecidos e valorizados nos centros europeus que se dedicavam aos estudos das leishmanioses”, afirma Jogas.
Nesta entrevista ao Blog de HCS-Manguinhos, ele apresenta a sua pesquisa, discute perspectivas históricas e divulga o livro que lançou este ano com Benchimol.
Na sua tese, você afirma que as leishmanioses se tornaram um desafio científico para a medicina tropical na América do Sul na primeira metade do século XX. Por quê?
Os primeiros diagnósticos parasitológicos de leishmanioses na América do Sul ocorreram em 1909, durante as obras de construção da Estrada Noroeste do Brasil. Foram feitos em laboratórios em São Paulo, a partir de operários que, após terem trabalhado em trechos de mata na cidade de Bauru, no interior paulista, contraíram uma doença com etiologia ainda desconhecida. Entre finais de 1908 e o início de 1909, esta manifestação clínica adquiriu caráter epidêmico tão forte nesta cidade que passou a ser conhecida como úlceras de Bauru.
Na grande maioria dos casos, provocava apenas lesões dermatológicas, mas em pequena porcentagem dos acometidos propagava-se às regiões mucosas do corpo, sobretudo, boca, nariz e faringe. A princípio, eram casos esparsos que chegavam na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, a centenas de quilômetros de Bauru, mas logo ficaram tão frequentes que era raro o dia em que não aparecia ao menos um novo doente em busca de assistência para suas graves feridas.
O médico Adolpho Lutz, em seu último ano como diretor do Instituto Bacteriológico de São Paulo, chegou a participar de uma expedição ao interior paulista a fim de investigá-la, mas encontrou dificuldade em firmar um diagnóstico. De acordo com editorial de abril de 1909 da Revista Médica de São Paulo, já havia uma certa atmosfera de ceticismo no meio médico paulista, quando o jornal O Estado de São Paulo publicou, em 30 de março de 1909, que Adolpho Lindemberg, dermatologista da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, havia encontrado o agente causal que “julga ser o causador dessa afecção até agora desconhecida”. Tratava-se de um protozoário que “pela sua forma e dimensão” era idêntico àquele que vinha sendo identificado em casos de leishmaniose cutânea no norte da África e em determinadas regiões da Ásia. No dia seguinte, o diagnóstico de Lindenberg foi confirmado por Antônio Carini e Ulysses Paranhos, respectivamente diretor e assistente de pesquisa do Instituto Pasteur de São Paulo.
O agente causal da Úlcera de Bauru era, de fato, uma Leishmania.
Esse achado parasitológico foi considerado um grande triunfo científico para esses médicos. Afinal, era a primeira vez que realizava-se diagnósticos parasitológicos de leishmaniose no hemisfério Ocidental, levando-os a publicar rapidamente comunicações preliminares para não perderem a prioridade da descoberta, tanto na Revista Médica de São Paulo como no periódico francês Bulletin de la Société de Pathologie Exotique, sobre uma temática pesquisa que já era valorizada por lideranças do campo da medicina tropical.
A associação das úlceras de Bauru às leishmanioses deu início a uma nova fase de pesquisa sobre este grupo de doenças, não apenas por ter representado o começo da constatação de uma abrangência territorial muito mais extensa do que era imaginada, através da multiplicação de diagnósticos em diferentes países sul-americanos, como Guiana Francesa, Peru, Colômbia, México e Paraguai, como também devido às peculiaridade que a doença assumia na região, como marcada predileção em atacar as partes mucosas do corpo, sobretudo do nariz e da boca, e cursos clínicos que ultrapassavam os trinta anos de duração; diferenças tão significativas que deram origem a um intenso e prolongado debate sobre a possibilidade e a pertinência em particularizar-se uma doença americana, o que dava proeminência e reais possibilidades de ascensão profissional aos pesquisadores e suas respectivas instituições científicas localizadas no continente sul-americano.
Quem eram estes pesquisadores e qual a sua relevância científica?
No início do século XX, as leishmanioses encontradas na América do Sul passaram a ser um tema de pesquisa constantemente visitado por diferentes personagens e instituições científicas que paulatinamente iam acrescentando novos elementos à cartografia da doença no Novo Mundo, dando ênfase às anomalias observadas e fornecendo modelos para que pesquisadores situados em outras áreas do continente americano dessem suas contribuições originais. Dentre os pesquisadores que se destacaram, posso citar Edmundo Escomel e Carlos Monge Medrano, no Peru, Alfredo Da Matta, Gaspar Vianna, Carlos Chagas, Antônio Carini, Adolpho Lindenberg e, mais tarde, Samuel Pessoa e Mauro Perreira Barretto, no Brasil, Luis Enrique Migone, no Paraguai e Salvador Mazza, na Argentina.
Meu principal argumento é que, apesar das disputas pela hegemonia científica sul-americana, os médicos e demais pesquisadores sul-americanos produziram conhecimentos originais em todas as dimensões da doença: caracterização clínica, transmissores, epidemiologia e terapêutica. Seus relatos eram conhecidos e valorizados nos centros europeus que se dedicavam aos estudos das leishmanioses. Lideranças deste novo campo médico, como Patrick Manson (Inglaterra) e Alphonse Laveran (França), utilizavam as ideias, concepções, classificações clínicas e fotografias feitas por pesquisadores da região, na confecção dos seus livros, tratados e manuais médicos, fazendo dos autores sul-americanos fonte de autoridade no assunto.
Você afirma que os sul-americanos “estabeleceram vigorosos canais de comunicações com centros médicos estabelecidos em outros continentes, sobretudo, o Europeu”. Poderia falar um pouco desses canais e suas trocas?
Na primeira metade do século XX, as leishmanioses não se configuravam como um problema de fácil resolução, ao qual seria possível simplesmente aplicar o repertório do conhecimento médico até então produzido na Europa. Eram, antes de tudo, uma questão científica em aberto, que exigia grandes habilidades e refinadas técnicas próprias do campo da medicina tropical para seu estudo e pesquisa. Os relatos sobre as especificidades da doença encontradas na América do Sul eram valorizados nos centros médicos europeus, e, por isso, propiciaram aos integrantes das comunidades médicas nacionais dos diferentes países da região o estabelecimento de vigorosos e duradouros canais de comunicações.
No artigo Trópicos, ciência e leishmanioses: uma análise sobre circulação de saberes e assimetrias, publicado na Revista História, Ciência, Saúde – Manguinhos em 2017, analisei um dos mais claros desses exemplos, que envolveu o médico peruano Edmundo Escomel, o brasileiro Alfredo Da Matta e os franceses Alphonse Laveran e Felix Mesnil na construção de conhecimento e enunciados sobre a espúnida, uma das formas de leishmaniose observada na região sul-americana.
Acredito que através da análise desses canais de comunicações podemos empreender análises históricas que ultrapassem as fronteiras nacionais e sigam os fluxos, interações, circulação, conexões, circuitos, transformações e também as clivagens e assimetrias existentes nos processos de construção das ciências, a partir de uma perspectiva global e não eurocêntrica. No entanto, faz-se necessário termos cuidado para não cair numa narrativa “nativista” simplificadora, que busque meramente revelar o protagonismo de um sábio não reconhecido – como uma espécie de apologia às regiões não-europeias –, nem cair na tentação de uma narrativa que presuma um mundo conectado como algo natural, onde pessoas, objetos, ideias e habilidades circulem de maneira livre, quando na realidade tais conexões são marcadas por assimetrias e tensões.
Você conclui a sua tese com a frase: “Espero que este trabalho tenha contribuído para uma visão menos eurocêntrica dos processos de construção e institucionalização da medicina tropical, que inclua os diversos personagens situados em regiões não-europeias.” Acredita que o trabalho terá o resultado esperado? Por quê?
Sim. Busquei demonstrar que os caminhos específicos pelos quais pesquisadores e instituições científicas em diferentes países sul-americanos se inseriram nos processos de construção e globalização dos parâmetros e preceitos da medicina tropical através de suas investigações originais sobre as leishmanioses encontradas neste continente. Uma das minhas estratégias foi dividir os capítulos da tese por dimensões da doença – caracterização clínica, vetores, epidemiologia e terapêuticas – de modo a demonstrar especificamente os argumentos utilizados para a ideia de especificidade da doença americana e mensurar em que medida estes atores históricos tiveram sucesso na concepção e validação sobre as leishmanioses encontradas nesta região.
Ser agraciado com menção honrosa no Prêmio de Teses Oswaldo Cruz 2020 é a confirmação que consegui atingir o objetivo proposto.
E você já lançou um livro! Poderia falar sobre esta parceria com o seu orientador?
Em agosto de 2020, Jaime Benchimol e eu lançamos o livro “Uma história das leishmanioses no novo mundo (fins do século XIX aos anos 1960)” pelas editoras Fino Traço e Fiocruz. Com 790 páginas e nove capítulos, é um trabalho de grande fôlego, único sobre esta temática no campo de história das ciências, que foi gestado pari passo com o desenvolvimento meu doutorado.
Para escrevê-lo, contamos com recursos provenientes de órgãos de fomentos nacionais e estrangeiros, como o CNPq, a FAPERJ e o Consortium for History of Science, Technology and Medicine. Esses financiamentos nos proporcionaram percorrer diversos acervos e bibliotecas situados em diferentes cidades brasileiras, como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Salvador e Belém e em outros em países como na Argentina, Paraguai, França, Estados Unidos, Suíça e Inglaterra. Com isso, conseguimos reunir imensos conjuntos documental e icnográfico que foram fundamentais para o escopo que demos ao trabalho.
Durante toda a pesquisa estabelecemos uma excelente dinâmica de trabalho: dividimos os recortes temporais que seriam analisados por cada autor e, sempre que íamos em busca de fontes primárias, ficávamos atentos aos documentos que julgássemos interessantes ao outro pesquisador.
O livro é dividido em duas partes bem delimitadas: na primeira, composta pelos cinco capítulos, exploramos a longa trajetória de construção de conhecimento que culminou na gênese e validação do conceito de leishmaniose tegumentar americana para designar as formas anômalas da doença encontrada no continente sul-americano. Para isso, retornamos ao ano de 1876, quando, pesquisadores associados a empreitada imperialista inglesa propuseram a denominação de botão do Oriente para englobar úlceras cutâneas encontradas em diferentes regiões do norte da África e na Ásia, antes entendidas como manifestações particularizadas de cada localidade e, em geral, associadas a má qualidade da água consumida por essas população. Exploramos também a construção do conceito de leishmanioses, em 1906, para designar duas doenças, o botão do Oriente e o calazar, com manifestações clínicas e sintomatologias completamente diferenciadas entre si. Em seguida, passamos a analisar o contexto sul-americanos, como o estranhamento inicial das manifestações anômalas encontradas nesta região, os argumentos utilizados para defender que se tratava de uma doença pré-colombiana e autóctone deste continente e, sobretudo, o protagonismo de pesquisadores nativos desta região e outros estrangeiros que elegeram diferentes países sul-americanos para o desenvolvimento de sua prática profissional. O marco final desta primeira parte do livro é o lançamento do compêndio “Leishmaniose Tegumentar Americana” por Samuel B. Pessoa e Mauro P. Barreto, em 1944, como resultado não planejado da Comissão de Estudos da Leishmaniose, que por dois anos e meio havia realizado o maior empreendimento médico-social contra a leishmaniose já ocorrido na América do Sul.
A segunda parte do livro é de autoria exclusiva de Benchimol. Ela se inicia com os trabalhos desenvolvidos por Evandro Chagas sobre a leishmaniose visceral americana nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. Em seguida, ele se foca nas conexões internacionais estabelecidas por este cientista com prestigiados centros médicos, sobretudo, aqueles situados no mediterrâneo, na Índia e na China. O objetivo central de Evandro Chagas era legitimar a proposição de uma forma americana de leishmaniose visceral, tanto no plano interno como um importante problema de saúde pública, quando no externo, quando uma instigante questão científica; Jaime também se propõe a analisar uma grande epidemia de leishmaniose visceral que irrompeu no norte do Ceará em 1953 e, por fim, os caminhos específicos pelos quais a leishmaniose visceral foi considerado um imponente problema de saúde pública no Norte e Nordeste do Brasil. O livro termina com o debate entre pesquisadores brasileiros e estrangeiros sobre o estado da arte em que se encontrava a questão das leishmanioses que coincide com a chegada dos pesquisadores Ralph Lainson e Jeffrey Shaw, da London School of Tropical Medicine ao Instituto Evandro Chagas. A chegada destes professores a capital paraense representou um ponto de inflexão na maneira de entender a biologia e a epidemiologia das leishmanioses no Novo Mundo.
A chegada de Laison e Shaw na região amazônica brasileira será o ponto de partida do segundo volume do livro, que em breve será lançado e continuará a explorar a instigante história das leishmanioses no Novo Mundo.
Como citar:
Jogas Junior, Denis Guedes. Tese joga luz nas descobertas sul-americanas sobre leishmanioses. Entrevista ao Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Publicado em 11 de outubro de 2020. Disponível em http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/tese-joga-luz-nas-descobertas-sul-americanas-sobre-leishmanioses
Leia no Blog de HCS-Manguinhos:
Leishmanioses: circulação de saberes e assimetrias entre ‘centros’ e ‘periferias’ científicas no início do século XX
Em artigo, Denis Guedes Jogas Jr mostra que pesquisadores sul-americanos não contaram com o mesmo acesso aos principais periódicos científicos da Europa que seus colegas europeus
Livro detalha a trajetória das leishmanioses no Brasil
Os historiadores Jaime Larry Benchimol e Denis Guedes Jogas Junior iluminam aspectos pouco conhecidos da história do fim do século XIX aos anos 1960. O lançamento é uma co-edição da Editora Fiocruz com a Fino Traço Editora.
Doutores pela Casa de Oswaldo Cruz vencem Prêmio Oswaldo Cruz de Teses em Ciências Sociais e Humanas
Rachel de Almeida Viana recebeu o primeiro lugar na área de Ciências Humanas e Sociais, e Christiane de Roode Torres e Denis Guedes Jogas Junior menções honrosas
Leia em HCS-Manguinhos:
Trópicos, ciência e leishmanioses: uma análise sobre circulação de saberes e assimetrias, artigo de Denis Guedes Jogas Jr. (vol.24, no.4, out./dez. 2017)